terça-feira, 30 de abril de 2019

As Mil e Uma Noites

Embora culturalmente intrigante –e, possivelmente, de intenções artísticas difíceis de serem melhor apreendidas –esta desigual animação japonesa “Sen’ya Ichiya Monogatari” produzida pelo mestre Osamu Tezuka e dirigida por Eichi Yamamoto (diretor também do cult e obscuro “A Tragédia de Belladona”) não aparenta ser realizada para o público infantil.
Sua trama é uma sucessão novelesca de infortúnios e guinadas dramáticas (e de considerável extensão) que refletem o folhetim dos enredos clássicos.
Começamos na humilde presença do vendedor de água Aldin (nome que referencia o famoso personagem “Aladdin”), cuja vida de pobreza nas ruas de Bagdá se vê retratada nas primeiras cenas com objetividade notável por uma animação que, ao longo de todo o filme, não poupará técnicas imprevistas (nem sempre harmoniosas) para passar ao público seus propósitos.
É dessa forma que Aldin, expectador ocasional de um leilão de escravos, se vê arrebatado pela beleza singular de Milliam, uma escrava vendida a um efeminado filho de aristocratas. Aldin vale-se da distração provocada por uma tempestade de areia e foge com Milliam a fim de consumar a súbita paixão –e, nesse aspecto, a animação não enxerga as diversas cenas de nudez como um tabu.
Após algumas peripécias, Aldin e Milliam se separaram. Ela termina vendida ao jovem efeminado graças à influência do pai. Ele vira prisioneiro, de onde padece para escapar. Milliam, porém, está grávida e quando a criança nasce (uma menina a quem é dado o nome Jallis), Milliam morre.
A partir disso, inicia-se uma jornada irregular centralizada em Aldin que tenta roubar um carregamento de ouro encontrado numa montanha mágica, esconderijo de ladrões que entram e saem usando a frase “Abre-te, Sésamo!” –um decalque de “Ali Babá e Os Quarenta Ladrões”, conto que, de fato, integra a coletânea árabe conhecida como “As Mil e Uma Noites”.
Cúmplice de uma moça, Madia, abusada pelos ladrões (dos quais, um dos integrantes é contratado pelos senhores que compraram Milliam), Aldin foge pelo mundo num cavalo de madeira voador (!), terminando numa ilha povoada por mulheres nuas e deslumbrantes. O êxtase ininterrupto de Aldin perturba Madia, que decide ir embora. Aldin só o faz quando descobre, depois de maratonas extensivas de prazer, que as mulheres da ilha são seres sobrenaturais que se transformam em cobras (!).
Náufrago, ele é achado em alto-mar por um navio escravagista que não tarda a aportar numa ilha cheia de monstros. Mais uma vez sobrevivente e à deriva no mar, Aldin acha um navio assombrado, cujas entidades sobrenaturais lá presentes se dispõem a realizar seus desejos. E assim ele troca uma vida miserável por outra, opulenta e gratificante.
A animação salta então quinze anos, onde encontramos Jallis crescida, parecidíssima com a linda mãe Milliam, e apaixonada por um pastor de ovelhas. Logo sabemos (por cenas que se enrolam um pouco mais do que o narrativamente necessário) que criaturas sobrenaturais –muito provavelmente oriundas do folclore oriental –acompanham e interferem no destino afetivo do jovem casal.
No entanto, Aldin logo virá para terra firme, agora estabelecido e afortunado. Seu reencontro com Jallis –e a desconcertante descoberta da semelhança dela com seu grande amor –se dará em meio à uma competição de riquezas.
Dentre as muitas raridades perdidas das animações orientais, “As Mil e Uma Noites” é apontada como uma obra erótica pelos poucos que dela têm conhecimento, mas é um rótulo um tanto injusto e precipitado: No lirismo que imprime à exposição graficamente bela do corpo humano (sobretudo, o feminino); na ausência de momentos explícitos de sexo; e no caráter lúdico inerente aos acontecimentos carnais aqui mostrados, o filme de Eichi Yamamoto ostenta um encanto e uma ausência de segundas intenções que chegam a ser cativantes –e essa condução cheia de refinamento, reflexo do profundo conhecimento artístico em animação dos realizadores, sobrepuja as deficiências técnicas inevitáveis da obra, e sua constantemente irregular junção de recursos diversos, como a animação convencional, a foto-montagem, a rotoscopia formulada e até mesmo a fusão entre filmagem real e desenho animado.

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