Aquele desavisado expectador que presumir que
as comédias atuais são tematicamente mais elaboradas, ácidas, vívidas e
inteligentes que as de outrora não poderia estar mais enganado.
Entre tantos exemplos de esplêndida relevância,
“O Diabo e A Mulher”, de Sam Wood, surge como prova cabal desse argumento.
Já no início, na introdução de seu título, o
filme esbanja criatividade e humor corrosivo justapondo os dois personagens
principais e seus aspectos antagônicos –que serão explorados, no filme que se
segue, de uma forma bem diferente do que o expectador menos informado pode
imaginar –seguido por um prefácio hilário.
Seu roteiro absolutamente brilhante versa
inicialmente em torno do egocentrismo experimentado pelo temido dono de uma
loja de departamentos de Nova York, o milionário Sr. J.P. Merrick (Charles
Coburn, tão sensacional quanto todos os outros deste prodigioso elenco).
Em meio ao temor de seus executivos
subordinados com seus acessos de ira, o que o incomoda não é tanto o fato dos
empregados moverem uma espécie de levante contra seu sistema de trabalho, mas
sim eles enforcarem um boneco simbólico dele próprio como sinal de protesto.
Com orgulho ferido, o recluso patrão (que se
vangloria de não ser visto nem reconhecido por jornalistas, empregados e
cidadãos comuns a algumas décadas) toma a decisão de rastrear os líderes desse
movimento e demiti-los. Como o detetive particular que contratou para o
trabalho se tornou subitamente indisponível, o próprio Sr. Merrick –agora
assumindo a identidade de Thomas Higgins, a mesma do detetive ausente –resolve
dar uma de espião (!): Ele se faz passar como um dos pobres funcionários
recém-contratados, para espiar a situação dentro de uma de suas lojas e, a
partir dali, identificar os mais inconformados dentre seus funcionários e que
atuam como agente agitadores dos demais.
Todavia, a realidade com que se depara é outra:
Ele faz amizade com a jovem Mary Jones (Jean Arthur, inebriante), uma solicita
vendedora de sapatos; e faz inimizade com o intratável Sr. Hooper (Edmund Gwenn),
gerente do local cujo hábito é menosprezar seus subordinados.
A ironia é que Mary vem a ser namorada e aliada
do líder das revoltas trabalhistas que têm se sucedido na loja, o inconformista
e eloquente Joe (Robert Cummings).
Embora vá dando prosseguimento ao seu plano (e,
no processo, envolvendo-se em diversas situações das mais divertidas), Merrick
(ou Higgins!) se vê cada vez mais abalado pela amizade e admiração que passa a
nutrir por Joe e pelo carinho que descobre ter por Mary, o que conduz os
protagonistas a um dilema; Merrick irá revelar que é, na verdade, o tirano
empregador e partir os corações daqueles que aprendeu a gostar? Ou encontrará
um meio de fazer prevalecer a justiça?
Afinal, como em todo e qualquer filme que trata
de uma farsa, a verdade mais cedo ou mais tarde terá de emergir –e, embora o
filme maravilhoso que Sam Wood molda, seja genial na construção adorável desse
conflito de interesses (concebendo com isso uma narrativa extremamente
envolvente), a solução surge até breve e abrupta, quase uma elipse.
Curioso é que o filme também evita uma
estrutura previsível de comédia romântica com notável propriedade: Na visível
diferença de idade entre seus dois personagens principais (Coburn e Arthur), o
roteiro constrói entre eles uma relação de pai e filha, deixando a questão
amorosa (que surge por sua vez entre Coburn e a personagem de Spring Byington)
ligeiramente de lado.
Realizado com sagacidade e assombrosa astúcia,
“O Diabo e A Mulher” oferece, em meio aos aparentemente inocentes anos 1940,
uma fábula moral digna de cinco estrelas sobre a luta de classes, os rancores
trabalhistas, o comportamento humano e a descoberta da solidariedade.
Em tempo: O título original
deste clássico indiscutível (“The Devil And Miss Jones”) serviu de inspiração
para o título de um dos mais cultuados filmes pornôs de todos os tempos, “O
Diabo Na Carne de Miss Jones” (“The Devil In Miss Jones”), a sua maneira, outro
clássico indiscutível.
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