Os filmes realizados na década de 1990
permitiram ao italiano Bernardo Bertolucci reaver uma verve intimista que ele
pareceu deixar de lado com seus trabalhos mais reconhecidos durante a década de
1980, como “O Último Imperador” e “O Céu Que Nos Protege”. Dentre eles, é
“Assédio”, lançado em 1998, que melhor representa esses propósitos.
Nele, Bertolucci despe-se de pretensões
históricas e até ideológicas, embora pareça que ele ainda almeje lançar alguma
luz sobre mazelas sociais ocasionadas na África –tudo, porém, não passa de
detalhes adicionais diante de seu interesse nos sentimentos.
Interpretada por Thandie Newton (de “Missão Impossível 2”), a protagonista Shandurai surge numa breve cena na África. Ela é
médica assistencial, e seu marido, professor. Numa cena bem indicativa da
sensibilidade e da meticulosidade de Bertolucci como diretor, Shandurai vê o
marido ser levado preso por militares ditatoriais, e nela já se estabelecem as
diretrizes dramáticas que orientarão todo o filme.
Dessa forma, Shandurai reaparece, na cena
seguinte, na Itália, vivendo como camareira particular de um músico solitário
de hábitos excêntricos (David Thewlis, de “Cruzada” e “Mulher Maravilha”)
enquanto se dedica à aulas de medicina.
No entanto, pequenos indícios começam a alertar
Shandurai para as reais intenções do tal músico, o Sr. Kinsky: Ele deixa
objetos para ela em seu armário como presentes, num hábito que ela, oriunda de
uma outra cultura, custa a compreender.
Numa noite em que sua atração por ela se revela
particularmente irreprimível, Kinsky declara seu amor e chega a pedi-la em
casamento –ela nega, claro (ele não sabia que ela já era casada), e afirma que
isso só será possível que ele tirar seu marido da cadeia.
A partir daí, uma nova relação se estabelece,
da parte e do ponto de vista de ambos: Kinsky adota uma atitude mais
respeitosa, embora não deixe de enfatisar, em seus olhares e expressões, que
ainda é apaixonado por ela. Shandurai, por sua vez, ao passo em que vai
descobrindo outros indícios –agora que indicam que Kinsky talvez esteja usando
de seus recursos para realmente livrar seu marido da cadeia, honrando o pedido
dela –também vê despertar em si desejos inesperados. Saber que Kinsky a quer
torna Shandurai feliz, sim, e outras coisas que em geral a vida foi injusta o
bastante para lhe negar: Amada. Endeusada. Protegida.
Kinsky passa a estudar com mais atenção a
música africana, por meio da qual consegue estabelecer, a despeito das emoções
contraditórias que um desperta no outro, uma afinidade silenciosa com seu
objeto do desejo.
Afinal, para Shadurai, Kinsky é o homem branco
que ela jamais irá desposar; mas, também a fonte de idolatria que lhe fornece
uma vaidade inesperada e bem-vinda. É o europeu cheio de trejeitos esquisitos;
mas, é também o homem que se mostra presente, disposto e interessado.
A muralha de rejeição erguida com a
circunstância do assédio vai assim sendo pouco a pouco desmontada conforme
Bertolucci investiga esses pormenores insondáveis da paixão com a ajuda de um
casal primoroso de atores.
Certamente não faltam críticos a este trabalho apontando
nele uma tendenciosa tentativa de romancear o ato assediador; e Bertolucci
enxerga essa questão, no mínimo, com ambiguidade –vide os detalhes sórdidos que
cercam os bastidores da famosa e perturbadora cena do estupro em “O Último
Tango Em Paris”.
O diretor também não deixa de ficar atento a um
elemento que os protagonistas parecem ignorar o máximo possível: De que o
cumprimento do pedido de Shandurai, por parte de Kinsky (a libertação do marido
dela), ao mesmo tempo que os aproxima (e a relação deles, de fato, vai
crescendo em amor, atração e intensidade) também os afasta (afinal, é o papel
da esposa de outro, e não de Kinsky, que Shandurai deverá então desempenhar),
desvencilhando-se da constatação moral de que tudo constitui um adultério.
Até chegar ao desfecho,
Bertolucci terá trabalhado com habilidade notável as variações íntimas dessa
situação para então resguardar do expectador uma resposta que pudesse tornar
redundante sua obra.
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