quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O Senhor dos Anéis

Engana-se aquele que pensa que a aclamada trilogia de Peter Jackson foi a primeira a transpor o épico literário de J.R.R. Tolkien para o cinema: Muito antes, ainda no final da década de 1970, o animador Ralph Bakshi, apaixonado pela obra, tentou conceber uma versão.
Ele disputou diretamente com o diretor inglês John Boorman (de “Excalibur”) o comando do projeto cujos direitos se encontravam com a United Artists; Boorman desejava fazer um único filme e em live-action; Bakshi tinha interesse em fazer uma animação (sua especialidade) que obedecesse a repartição original dos livros em três volumes.
O estúdio optou pela proposta de Bakshi.
A fim de obter resultados mais práticos e reduzir os custos –que, todos sabiam, seriam consideráveis –optou-se pelo processo da rotoscopia formulada, onde um grupo de atores reais filmou previamente todas as cenas da trama. Sobre tais cenas foram feitos os desenhos da animação, ganhando assim movimentações muito mais realistas.
Declaradamente apreciada por Peter Jackson, a animação, nota-se, tem muitos elementos, inclusive visuais, em comum com os filmes, até mesmo certas opções narrativas se repetem: A trama começa no Condado durante o aniversário do centenário Bilbo, tio de Frodo, durante o qual ele presenteia seu sobrinho com o famigerado Um Anel –artefato que, mais tarde, o mago Gandalf (voz de William Squire) lhe diz pertencer ao temido Sauron, o Senhor do Escuro.
Frodo então se une aos seus amigos, Sam, Merry e Pippin, para cruzar a Terra Média e levar o Um Anel até o reino élfico de Valfenda, para deixá-lo sob os cuidados do austero e sábio elfo Elrond encontrando, pelo meio do caminho, os tenebrosos Nasgul, e contando com a proteção do cavaleiro Aragorn (voz de John Hurt).
Em algum momento, um grupo é formado, junto do qual, sob a liderança do mago Gandalf, Frodo e seus amigos devem levar o Um Anel agora ao próprio reduto do mal, Mordor, para jogá-lo dentro do vulcão onde foi forjado; o único lugar onde, de fato, pode ser destruído.
Enfim, todos os eventos registrados no primeiro filme, “A Sociedade do Anel”, também já se sucediam neste, ainda que de forma gradativamente mais precária –como se a narrativa de Bakshi fosse aos poucos se cansando do tamanho monumental do material –e até mesmo alguns acontecimentos de “As Duas Torres” também; porque, num determinado momento do projeto o orçamento não permitiu o plano original de três animações, obrigando a produção a abreviar a ideia em apenas duas. Dessa forma, este “O Senhor dos Anéis” se encerra no ponto da Batalha do Abismo de Helm –que passa completamente corrida tamanho o desleixo da narrativa –deixando o restante da história para a animação seguinte, “O Retorno do Rei”.
Tudo o que é maravilhoso na trilogia de Peter Jackson soa relapso nesta animação: Do ritmo dos acontecimentos (oscilando entre o monótono e o estranhamente tortuoso), até a escolha visual de alguns personagens específicos (sobretudo, os que surgem após o primeiro terço, como Aragorn, Legolas, Elrond, o demônio Balrogh e Barbárvore, todos pífios), passando pela construção do personagem Gollum (definido por monólogos histéricos e enfadonhos), a animação de Bakshi incorpora uma atmosfera involuntária de bizarrice que tanto provém das limitações da rotoscopia formulada da época como do equivocado tratamento narrativo dado ao conteúdo do livro, que na visão de Bakshi ganha as dimensões de um sonho, ora confuso, ora assustador, ora completamente lisérgico.
Essas características somadas à necessidade de imprensar uma ampla trama de dois grandes tomos num desenho animado de apenas duas horas conferem um andamento problemático e difícil a “O Senhor dos Anéis”.
É preciso compreender que as animações do período em que foi feito flertavam com esse viés mais experimental, e que os filmes impecáveis de Jackson estavam décadas ainda longe de existirem para aceitar a desconstrução quase mambembe sofrida aqui pela obra de Tolkien, mesmo assim, a animação de Bakshi conquistou alguns apreciadores que o defendem até hoje, elegendo-o assim ao status de clássico maldito.

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