Engana-se aquele que pensa que a aclamada
trilogia de Peter Jackson foi a primeira a transpor o épico literário de J.R.R.
Tolkien para o cinema: Muito antes, ainda no final da década de 1970, o
animador Ralph Bakshi, apaixonado pela obra, tentou conceber uma versão.
Ele disputou diretamente com o diretor inglês
John Boorman (de “Excalibur”) o comando do projeto cujos direitos se
encontravam com a United Artists; Boorman desejava fazer um único filme e em
live-action; Bakshi tinha interesse em fazer uma animação (sua especialidade)
que obedecesse a repartição original dos livros em três volumes.
O estúdio optou pela proposta de Bakshi.
A fim de obter resultados mais práticos e
reduzir os custos –que, todos sabiam, seriam consideráveis –optou-se pelo
processo da rotoscopia formulada, onde um grupo de atores reais filmou
previamente todas as cenas da trama. Sobre tais cenas foram feitos os desenhos
da animação, ganhando assim movimentações muito mais realistas.
Declaradamente apreciada por Peter Jackson, a
animação, nota-se, tem muitos elementos, inclusive visuais, em comum com os
filmes, até mesmo certas opções narrativas se repetem: A trama começa no
Condado durante o aniversário do centenário Bilbo, tio de Frodo, durante o
qual ele presenteia seu sobrinho com o famigerado Um Anel –artefato que, mais
tarde, o mago Gandalf (voz de William Squire) lhe diz pertencer ao temido
Sauron, o Senhor do Escuro.
Frodo então se une aos seus amigos, Sam, Merry
e Pippin, para cruzar a Terra Média e levar o Um Anel até o reino élfico de
Valfenda, para deixá-lo sob os cuidados do austero e sábio elfo Elrond
encontrando, pelo meio do caminho, os tenebrosos Nasgul, e contando com a
proteção do cavaleiro Aragorn (voz de John Hurt).
Em algum momento, um grupo é formado, junto do
qual, sob a liderança do mago Gandalf, Frodo e seus amigos devem levar o Um
Anel agora ao próprio reduto do mal, Mordor, para jogá-lo dentro do vulcão onde
foi forjado; o único lugar onde, de fato, pode ser destruído.
Enfim, todos os eventos registrados no primeiro
filme, “A Sociedade do Anel”, também já se sucediam neste, ainda que de forma
gradativamente mais precária –como se a narrativa de Bakshi fosse aos poucos se
cansando do tamanho monumental do material –e até mesmo alguns acontecimentos
de “As Duas Torres” também; porque, num determinado momento do projeto o
orçamento não permitiu o plano original de três animações, obrigando a produção
a abreviar a ideia em apenas duas. Dessa forma, este “O Senhor dos Anéis” se
encerra no ponto da Batalha do Abismo de Helm –que passa completamente corrida
tamanho o desleixo da narrativa –deixando o restante da história para a
animação seguinte, “O Retorno do Rei”.
Tudo o que é maravilhoso na trilogia de Peter
Jackson soa relapso nesta animação: Do ritmo dos acontecimentos (oscilando
entre o monótono e o estranhamente tortuoso), até a escolha visual de alguns
personagens específicos (sobretudo, os que surgem após o primeiro terço, como
Aragorn, Legolas, Elrond, o demônio Balrogh e Barbárvore, todos pífios),
passando pela construção do personagem Gollum (definido por monólogos
histéricos e enfadonhos), a animação de Bakshi incorpora uma atmosfera
involuntária de bizarrice que tanto provém das limitações da rotoscopia
formulada da época como do equivocado tratamento narrativo dado ao conteúdo do
livro, que na visão de Bakshi ganha as dimensões de um sonho, ora confuso, ora
assustador, ora completamente lisérgico.
Essas características somadas à necessidade de
imprensar uma ampla trama de dois grandes tomos num desenho animado de apenas
duas horas conferem um andamento problemático e difícil a “O Senhor dos Anéis”.
É preciso compreender que
as animações do período em que foi feito flertavam com esse viés mais
experimental, e que os filmes impecáveis de Jackson estavam décadas ainda longe
de existirem para aceitar a desconstrução quase mambembe sofrida aqui pela obra de
Tolkien, mesmo assim, a animação de Bakshi conquistou alguns apreciadores que o
defendem até hoje, elegendo-o assim ao status de clássico maldito.
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