sábado, 2 de maio de 2020

O Olho Mágico do Amor

Ainda que certamente fetichista, sacana e pervertido (a exemplo da grande maioria dos filmes brasileiros do período), o trabalho de 1982 de José Antonio Garcia e Ícaro Martins ilustrava a qualidade cinematográfica que podia ser almejada mesmo nas despudoradas produções da Boca do Lixo, que representou durante boa parte daqueles anos, o pólo de produção cinematográfica nacional –ainda que suas obras e seus realizadores tenham adquirido lendária aura de promiscuidade.
“O Olho Mágico do Amor” fala sobre o exercício do olhar, e de como esse ato remodela o ser humano e sua relação com o meio. É uma metalinguagem que não deixa de trabalhar com as ferramentas que tinha a mão –nudez gratuita, premissa desavergonhada e erotismo geral –no entanto, em sua referência ao voyeurismo como agente de reflexão e mudança, ele agrega inesperadas características a um filme que já satisfaz bastante.
Antes de tornar-se diretora de cinema nos anos 1990, Carla Camurati (que realizou ainda outros dois filmes com os mesmos diretores, “Nova Onda” e “A Estrela Nua”) interpreta Vera, uma jovem extremamente introvertida, tímida e recatada, a despeito de ser bela.
Filha de uma família de classe média-baixa (e o retrato dos filmes nacionais de famílias suburbanas assalariadas é único e inconfundível), Vera procura por algum emprego e termina sendo contratada na Boca do Lixo, como secretária de um escritório de ornitologia.
Durante sua rotina profissional –na qual são registrados com absoluta normalidade os assédios de seu patrão, vivido por Sergio Mamberti –Vera descobre que, no apartamento imediatamente ao lado da sala de escritório há um quarto ocupado por uma prostituta.
Nele, Penelope (Tania Alves) atende seus clientes num misto de êxtase pessoal e amor ao trabalho que confunde frequentemente obrigação com prazer e sentimento –e Tania Alves, como em outros filmes, ostenta fulgor sexual genuíno.
O ato de espiar desperta em Vera uma excitação que ela desconhecia, e durante mal-justificados expedientes à noite (o patrão lhe deu a chave do escritório), Vera acompanha as aventuras sexuais de Penelope, convertendo-se numa espécie de expectadora do filme à parte que ela protagoniza.
Os diretores José Antonio Garcia e Ícaro Martins, porém, não perdem de vista o outro filme, no qual, inspirada pela personalidade diametralmente oposta de Penelope (extrovertida, espalhafatosa, exuberante), Vera vai desabrochando, ao seu próprio jeito, para a própria sexualidade, descobrindo as variadas alternativas de prazer a disposição no submundo da Boca do Lixo.
Não perdem também as mais imprevistas oportunidades para a audácia: Numa das cenas concebidas provavelmente para ilustrar a libido de Vera manifestando-se nas circunstâncias mais inesperadas, ela resolve dar um banho de chuveiro em seu pai, que chegou bêbado em casa, e os diretores conseguem acrescentar um desconcertante (e incestuoso) clima de excitação num momento assim tão inusitado.
Evidentemente influenciado por "A Bela daTarde", o tratado cinematográfico de Buñuel sobre desejos represados na mente humana, “O Olho Mágico do Amor” conduz seus dois filmes distintos (o de Vera, e o de Penelope) com hegemonia até seu desfecho, onde eles por fim se fundem: Suas duas protagonistas se encontram na cena final onde, mais do que uma forte sugestão de lesbianismo (embora haja), a narrativa reforça a conexão estabelecida entre as duas personagens, numa das mais belas cenas do longa-metragem, sucedida por uma sacada metalingüistica que só salienta as aspirações cinematográficas da obra –Vera e Penelope, na cama, no auge de um ardente interlúdio sexual, veem-se não mais sozinhas, mas cercadas de toda uma equipe de filmagem, contra-regras, iluminadores, maquiadores e câmeras.
Os dois filmes paralelos, moldados por José Antonio Garcia e Ícaro Martins, se fundem num só: Aquele que nós estávamos assistindo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário