Ainda que certamente fetichista, sacana e
pervertido (a exemplo da grande maioria dos filmes brasileiros do período), o
trabalho de 1982 de José Antonio Garcia e Ícaro Martins ilustrava a qualidade
cinematográfica que podia ser almejada mesmo nas despudoradas produções da Boca
do Lixo, que representou durante boa parte daqueles anos, o pólo de produção
cinematográfica nacional –ainda que suas obras e seus realizadores tenham
adquirido lendária aura de promiscuidade.
“O Olho Mágico do Amor” fala sobre o exercício
do olhar, e de como esse ato remodela o ser humano e sua relação com o meio. É
uma metalinguagem que não deixa de trabalhar com as ferramentas que tinha a mão
–nudez gratuita, premissa desavergonhada e erotismo geral –no entanto, em sua
referência ao voyeurismo como agente de reflexão e mudança, ele agrega
inesperadas características a um filme que já satisfaz bastante.
Antes de tornar-se diretora de cinema nos anos
1990, Carla Camurati (que realizou ainda outros dois filmes com os mesmos
diretores, “Nova Onda” e “A Estrela Nua”) interpreta Vera, uma jovem
extremamente introvertida, tímida e recatada, a despeito de ser bela.
Filha de uma família de classe média-baixa (e o
retrato dos filmes nacionais de famílias suburbanas assalariadas é único e
inconfundível), Vera procura por algum emprego e termina sendo contratada na
Boca do Lixo, como secretária de um escritório de ornitologia.
Durante sua rotina profissional –na qual são
registrados com absoluta normalidade os assédios de seu patrão, vivido por
Sergio Mamberti –Vera descobre que, no apartamento imediatamente ao lado da
sala de escritório há um quarto ocupado por uma prostituta.
Nele, Penelope (Tania Alves) atende seus
clientes num misto de êxtase pessoal e amor ao trabalho que confunde
frequentemente obrigação com prazer e sentimento –e Tania Alves, como em outros
filmes, ostenta fulgor sexual genuíno.
O ato de espiar desperta em Vera uma excitação
que ela desconhecia, e durante mal-justificados expedientes à noite (o patrão
lhe deu a chave do escritório), Vera acompanha as aventuras sexuais de
Penelope, convertendo-se numa espécie de expectadora do filme à parte que ela
protagoniza.
Os diretores José Antonio Garcia e Ícaro
Martins, porém, não perdem de vista o outro filme, no qual, inspirada pela
personalidade diametralmente oposta de Penelope (extrovertida, espalhafatosa,
exuberante), Vera vai desabrochando, ao seu próprio jeito, para a própria
sexualidade, descobrindo as variadas alternativas de prazer a disposição no
submundo da Boca do Lixo.
Não perdem também as mais imprevistas
oportunidades para a audácia: Numa das cenas concebidas provavelmente para
ilustrar a libido de Vera manifestando-se nas circunstâncias mais inesperadas,
ela resolve dar um banho de chuveiro em seu pai, que chegou bêbado em casa, e
os diretores conseguem acrescentar um desconcertante (e incestuoso) clima de
excitação num momento assim tão inusitado.
Evidentemente influenciado por "A Bela daTarde", o tratado cinematográfico de Buñuel sobre desejos represados na
mente humana, “O Olho Mágico do Amor” conduz seus dois filmes distintos (o de
Vera, e o de Penelope) com hegemonia até seu desfecho, onde eles por fim se
fundem: Suas duas protagonistas se encontram na cena final onde, mais do que
uma forte sugestão de lesbianismo (embora haja), a narrativa reforça a conexão
estabelecida entre as duas personagens, numa das mais belas cenas do
longa-metragem, sucedida por uma sacada metalingüistica que só salienta as
aspirações cinematográficas da obra –Vera e Penelope, na cama, no auge de um
ardente interlúdio sexual, veem-se não mais sozinhas, mas cercadas de toda uma
equipe de filmagem, contra-regras, iluminadores, maquiadores e câmeras.
Os dois filmes paralelos,
moldados por José Antonio Garcia e Ícaro Martins, se fundem num só: Aquele que
nós estávamos assistindo.
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