O cinema brasileiro sempre foi displicente com
a própria história. Tomemos como breve exemplo o cinema norte-americano: Se os
EUA, volta e meia, realizam produções as mais variadas sobre diversos episódios
de sua história antiga e recente –a ponto de tornar expectadores do mundo
inteiro cientes de eventos como a Guerra de Secessão, o assassinato de John
Kennedy ou, mais recentemente, os atentados de 11 de setembro –o cinema
brasileiro por outro lado tem duas únicas produções conhecidas a respeito do
maior garimpo a céu aberto da era moderna, transcorrido em pleno território
nacional e responsável por reunir uma legião tão grande de trabalhadores
braçais quanto a construção das pirâmides. E essas duas produções são “OsTrapalhões Na Serra Pelada” e este “Serra Pelada”, de Heitor Dhalia.
Suas diferenças profundas e essenciais
distanciam essas duas obras.
O primeiro, realizado no início da década de
1980, quando o garimpo estava em curso, capturou instantes legítimos da
aglomeração humana, quase como um documentário informal –embora sua proposta
fosse completamente outra –já a obra de Dhalia observa o acontecimento com
olhos atuais de alguém que se volta para o passado, não apenas almejando a
primorosa reconstituição que é admiravelmente obtida, mas justapondo uma
reflexão moral e existencial com um distanciamento que só o tempo pode
permitir.
Na abertura –uma mescla prodigiosa de cenas
documentais de arquivo e recriação minuciosa dos percalços dos garimpeiros
–vemos os noticiários televisivos que instigaram, em 1980, todo o Brasil:
Pepitas gigantescas de ouro, encontradas com facilidade na Serra Pelada, no
sudeste do estado do Pará, transformaram em milionários, do dia para a noite,
os homens que as acharam.
Amigos de infância, ainda que de índoles bem
distintas, o professor de escola pública Joaquim (Júlio Andrade) e o
bruta-montes Juliano (o ótimo Juliano Cazarré) deixam São Paulo para se
aventurar no garimpo como tantos outros. Eles testemunham, nos meses e anos que
se seguem, a multiplicação insana de garimpeiros desesperados pelo ouro
enquanto adquirem um barranco por escritura para poder explorar.
Logo, o traquejo para com a violência de
Juliano aliado ao conhecimento numérico e organizacional de Joaquim começam a
render dividendos levando a dupla a prosperar.
Ainda assim, não basta: Joaquim quer mais
dinheiro para a mulher e a filha que deixou para trás; Juliano quer, cada vez
mais, integrar a fauna dos poderosos da máfia regional –o que se reflete no
conturbado caso que ele tem com a jovem Tereza (a belíssima Sophie Charlotte),
noiva de um barão local, o Anão (Matheus Nachtergaele) que a tirou da
prostituição.
Como numa boa produção épica, o filme de Dhalia
equilibra com competência e zelo as facetas históricas –é mostrado o controle
instaurado pelo Exército Brasileiro sobre o garimpo nos anos subsequentes, com
a abolição de armas, bebidas alcoolicas e prostitutas da área dos garimpeiros
–e as facetas íntimas –as trajetórias pessoais de Juliano e Joaquim, em cujas
divergências enxergamos a gradual deterioração de sua amizade.
Uma manobra que em muito faz lembrar a análise
de brutalidade e ambição num comprometimento dos valores morais presente em “OTesouro de Sierra Madre”.
Tal qual em “O Cheiro do Ralo”, parece suscitar
profundo fascínio no diretor Heitor Dhalia essa observação do caminho que leva
um protagonista relativamente puro de encontro à sordidez –daí ser nítido seu
interesse maior por Juliano.
A partir do último terço, um personagem que
cresce em estatura é o de Wagner Moura, o ganancioso e calculista Lindo Rico,
pivô inclusive do rompimento entre os dois amigos.
“Serra Pelada” encontra
nessa hábil manipulação de motes –filmes de gangsteres com conluios e tudo o
mais, tiroteios quase ao estilo faroeste, e uma nunca subestimada avaliação reflexiva
disso tudo –elementos de gênero que o tornam atrativo e envolvente, uma obra
digna do perspicaz e hábil diretor que a realizou, preocupada, do início ao
fim, com a excelência e a simetria narrativa do caminho de sofrimento,
violência e aprendizado trilhado por seus personagens.
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