sábado, 15 de agosto de 2020

Torso

Se o giallo italiano foi uma progressão natural do suspense sob influências estilísticas da ‘exploitation’, é perfeitamente justo afirmar que o slasher foi também uma progressão do próprio giallo.
Em “Torso”, de Sergio Martino, essas características já começam a mostrar as caras, apontando para o nascimento de um novo sub-gênero que se alastraria pelo cinema comercial –sobretudo, o norte-americano –na década de 1980.
Se Martino preserva em “Torso” os elementos típicos do giallo –o assassino de luvas pretas, os varios suspeitos, a intriga quase sempre de natureza feminina –ele também dá início a uma sutil desconstrução desses paradigmas: Aqui, não apenas as mulheres, mas também alguns homens surgem vitimados pelo misterioso assassino, engrossando a contagem de corpos.
A cena que abre “Torso” mostra um despudorado ‘menage à trois’ –e, durante um bom tempo, ela parecerá gratuita aos olhos do expectador, visto que até quase o desfecho ela não ganha qualquer explicação.
É ali, contudo, que aparece pela primeira vez um take fugaz onde vemos os olhos de uma boneca serem destruídos por dois dedos; essa cena irá se repetir ao longo do filme sugerindo ser ela o indício mais pertinente para chegarmos à motivação do assassino.
Seu primeiro ataque já mata um casal de namorados, embora –reflexo condicionado do giallo –a moça receba muito mais atenção sádica do que o rapaz.
A segunda morte ocorre num lamaçal. Nas duas, a nudez das atrizes é deslumbrante, e também nas duas aparece um lenço usado para enforcamento.
Assim sendo, um núcleo de protagonistas vai se estabelecendo aos trancos e barrancos, revelando também a faceta mais frágil do filme de Martino: Seu manuseio desregrado dos personagens.
Em princípio, a protagonista parece ser Dani (a francesa Tina Aumont, de “Satyricon” e “Divina Criatura”) que, numa alusão à Dario Argento, passa o filme perturbada por uma memória fragmentada que poderia fornecer uma pista do assassino; mas que nunca surge com nitidez em sua lembrança, até ser tarde demais. Por conta dessa indecisão, Dani lança suspeitas sobre Stefano (Roberto Bisacco), seu ex-namorado que, na incapacidade de aceitar o rompimento, tem agido como um sociopata.
No entanto, na narrativa de Martino, todos os homens em cena ostentam algum indício que os torna suspeitos de serem o assassino, num trabalho bastante inspirado e indicativo da competência de Martino e de seu co-roteirista Ernesto Gastaldi.
“Torso” segue notável quando altera, numa fluidez e espontaneidade admiráveis, sua ambientação de uma universidade na cidade de Perúgia, onde todos os estudantes discutem a repercussão dos assassinatos, para uma mansão campestre no alto de uma colina nas redondezas de uma cidadezinha interiorana. Lá, Dani se reúne com as deliciosas amigas Katia (Angela Covello, de “Baba Yaga-A Bruxa Maldita”) e Ursula (Carla Brait), e mais tarde, com a americana Jane (Suzy Kendall, de “O Pássaro das Plumas de Cristal”) que, à essa altura, já começa a ganhar o protagonismo que lhe pertence –ainda que, até para além de seu meio, o filme de Martino tente desvencilhar-se de revelar qual delas é a personagem principal.
Embora traga uma condução primorosa e envolvente, é em seu terço final que “Torso” revela seus momentos mais memoráveis e cinematográficos: Após uma sequência bastante elíptica, sugestiva e básica no que tange à revelar informações ao público, percebemos que Jane (que teve um dos pés destroncados, pouco antes) ficou, de alguma forma, sozinha na casa, tornando-se um alvo relativamente fácil para o psicopata.
Esses vinte minutos finais, em que a mocinha indefesa e incapacitada se vê pelos cantos da casa à mercê de um assassino e contando com a única e improvável chance dele não notar sua presença lá, são de longe as cenas mais antológicas de “Torso”, e respondem pelos elementos que o tornaram um título tão singular quando representativo dentro desse sub-gênero.

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