Se o giallo italiano foi uma progressão natural
do suspense sob influências estilísticas da ‘exploitation’, é perfeitamente
justo afirmar que o slasher foi também uma progressão do próprio giallo.
Em “Torso”, de Sergio Martino, essas
características já começam a mostrar as caras, apontando para o nascimento de
um novo sub-gênero que se alastraria pelo cinema comercial –sobretudo, o
norte-americano –na década de 1980.
Se Martino preserva em “Torso” os elementos
típicos do giallo –o assassino de luvas pretas, os varios suspeitos, a intriga
quase sempre de natureza feminina –ele também dá início a uma sutil
desconstrução desses paradigmas: Aqui, não apenas as mulheres, mas também
alguns homens surgem vitimados pelo misterioso assassino, engrossando a contagem
de corpos.
A cena que abre “Torso” mostra um despudorado
‘menage à trois’ –e, durante um bom tempo, ela parecerá gratuita aos olhos do
expectador, visto que até quase o desfecho ela não ganha qualquer explicação.
É ali, contudo, que aparece pela primeira vez
um take fugaz onde vemos os olhos de uma boneca serem destruídos por dois
dedos; essa cena irá se repetir ao longo do filme sugerindo ser ela o indício
mais pertinente para chegarmos à motivação do assassino.
Seu primeiro ataque já mata um casal de
namorados, embora –reflexo condicionado do giallo –a moça receba muito mais
atenção sádica do que o rapaz.
A segunda morte ocorre num lamaçal. Nas duas, a
nudez das atrizes é deslumbrante, e também nas duas aparece um lenço usado para
enforcamento.
Assim sendo, um núcleo de protagonistas vai se
estabelecendo aos trancos e barrancos, revelando também a faceta mais frágil do
filme de Martino: Seu manuseio desregrado dos personagens.
Em princípio, a protagonista parece ser Dani (a
francesa Tina Aumont, de “Satyricon” e “Divina Criatura”) que, numa alusão à
Dario Argento, passa o filme perturbada por uma memória fragmentada que poderia
fornecer uma pista do assassino; mas que nunca surge com nitidez em sua
lembrança, até ser tarde demais. Por conta dessa indecisão, Dani lança
suspeitas sobre Stefano (Roberto Bisacco), seu ex-namorado que, na incapacidade
de aceitar o rompimento, tem agido como um sociopata.
No entanto, na narrativa de Martino, todos os
homens em cena ostentam algum indício que os torna suspeitos de serem o
assassino, num trabalho bastante inspirado e indicativo da competência de
Martino e de seu co-roteirista Ernesto Gastaldi.
“Torso” segue notável quando altera, numa
fluidez e espontaneidade admiráveis, sua ambientação de uma universidade na
cidade de Perúgia, onde todos os estudantes discutem a repercussão dos
assassinatos, para uma mansão campestre no alto de uma colina nas redondezas de
uma cidadezinha interiorana. Lá, Dani se reúne com as deliciosas amigas Katia
(Angela Covello, de “Baba Yaga-A Bruxa Maldita”) e Ursula (Carla Brait), e mais
tarde, com a americana Jane (Suzy Kendall, de “O Pássaro das Plumas de Cristal”) que, à essa altura, já começa a ganhar o protagonismo que lhe
pertence –ainda que, até para além de seu meio, o filme de Martino tente desvencilhar-se
de revelar qual delas é a personagem principal.
Embora traga uma condução primorosa e
envolvente, é em seu terço final que “Torso” revela seus momentos mais
memoráveis e cinematográficos: Após uma sequência bastante elíptica, sugestiva
e básica no que tange à revelar informações ao público, percebemos que Jane
(que teve um dos pés destroncados, pouco antes) ficou, de alguma forma, sozinha
na casa, tornando-se um alvo relativamente fácil para o psicopata.
Esses vinte minutos finais,
em que a mocinha indefesa e incapacitada se vê pelos cantos da casa à mercê de
um assassino e contando com a única e improvável chance dele não notar sua
presença lá, são de longe as cenas mais antológicas de “Torso”, e respondem
pelos elementos que o tornaram um título tão singular quando representativo
dentro desse sub-gênero.
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