domingo, 16 de agosto de 2020

Extermínio

Ainda no início da década de 2000, o formato de câmera digital era uma técnica que começava a ser assimilada por alguns realizadores mais audazes.
Em geral, esses cineastas –como Michael Mann, David Lynch e o japonês Takashi Miike –enxergavam a compensação de uma filmagem solta, dinâmica e propícia à inventividade e ao improviso, em relação à perda de um certo esplendor visual, de uma resolução satisfatória na imagem (especialmente em relação ao espectro de luz) e de trucagens mais elaboradas de fotografia: Um sacrifício que se fazia, em prol de realizar o filme que bem entendesse.
A esse senso de novidade e urgência trazido pela câmera digital, o escocês Danny Boyle acrescentou o inusitado, levando tal estilo (empregado para emoldurar tramas urbanas de invariável apelo realista) ao sub-gênero dos mortos-vivos com “Extermínio”.
É preciso notar que, à época, os mortos-vivos ainda não eram lugar-comum na cultura pop como o são hoje –obras como a refilmagem “Madrugada dos Mortos”, a sátira “Todo Mundo Quase Morto” ou a comédia “Zumbilândia” estavam longe de serem lançadas –ou seja, a iniciativa de Boyle pulsava de originalidade.
Inclusive, seus mortos-vivos sequer são “mortos-vivos” (!), na verdade, eles são ‘infectados’, seres vivos que padecem de um vírus que nada mais é que uma versão extrema e anabolizada da raiva, levando-os a adquirir comportamento irracional e selvagem anseio por carne humana –em suma, mortos-vivos embasados pela ciência.
A origem de tudo isso se dá na primeira cena, quando ativistas ambientais invadem um laboratório londrino e tentam soltar chipanzés usados como cobaias experimentais, sem saber que neles está inoculado o vírus da raiva.
O corte escurece a tela e surge o inscrito: “28 Days Later...”
Cheio de objetividade, o filme de Boyle não apenas faz desse o seu título original, como o usa para prontamente ambientar a trama, afinal, é exatamente ’28 dias depois’ que a história se reinicia, quando o incauto entregador Jim (Cillian Murphy) desperta de um coma num hospital onde esteve desde que foi atropelado, quando o mundo ainda era normal –o ponto de partida da trama, exatamente igual ao da série de zumbis “The Walking Dead”, lançada anos depois é, até hoje, fonte de debate entre os expectadores: Se teria o escritor dos quadrinhos que inspiraram aquela série, Robert Kirkman, se baseado na ideia deste roteiro original de Alex Garland, ou vice-versa –particularmente, eu acredito que tudo foi uma grande coincidência.
Perambulando por uma Londres completamente deserta –cujas cenas de uma metrópole desolada e desabitada são tão impactantes quanto as de “Eu Sou A Lenda” –Jim encontra os sobreviventes Selena (Naomi Harris, de “Piratas do Caribe-No Fim do Mundo”) e Mark (Noah Huntley) que lhe inteiram dos fatos acerca do novo mundo em que agora vive: Uma Inglaterra de cidades evacuadas e população escassa, onde os dias são abandonados e solitários e as noites, perigosas e arriscadas, com a ameça dos infectados a espreitar a todo momento.
Não há sinal de rádio ou de TV. Nem informações acerca do que ocorre no resto do mundo. Há dias, a eletricidade e a água encanada deixaram de chegar e, cidade após cidade, tudo foi devastado. Os infectados tomaram tudo e mataram quase todos –os poucos sobreviventes devem evitar o contágio expondo-se à mordida dos infectados; descuido que Mark comete, levando-o logo em seguida a perder a vida.
Mais tarde, Jim e Selena encontram Frank (o ótimo Brendan Gleeson) e Hannah (Megan Burns), pai e filha que os acolhem num apartamento do centro, contudo, a escassez de água e a proximidade dos infectados leva-os a pegar a estrada tentando chegar num refúgio que, segundo uma transmissão de rádio, se encontra numa base miliar nas proximidades de Manchester.
Entretanto, não será lá que encontrarão abrigo ou segurança, mas, sim um tentativa truculenta e autoritária de recomeçar a civilização a partir das noções misóginas e prepotentes de seu comandante, o Major West (Christopher Eccleston).
Uma apaixonante e apaixonada homenagem ao gênero dos mortos-vivos, perpetrada com o talento singular de Danny Boyle e de sua prodigiosa equipe (além do roteirista Garland, certamente merece menção seu arrojado diretor de fotografia, Anthony Dod Mantle), “Extermínio” é composto de um arco narrativo precisamente divido em três atos que representam, em si, uma citação a cada episódio da “Trilogia dos Mortos-Vivos”, de George Romero, a cartilha do cinema moderno de zumbis: Na primeira parte, temos o protagonista às voltas com a situação básica em ambientes residenciais (a premissa de “A Noite dos Mortos-Vivos”); na segunda, com mais cenas envolvendo edifícios e a cidade grande, o apocalypse zumbi é colocado em perspectiva do próprio consumismo metafórico da modernidade (reflexão presente nas entrelinhas de “Despertar dos Mortos”, do qual “Madrugada dos Mortos”, citado acima, é refilmagem); e, por fim, na terceira parte, os personagens se vêem num confinamento militar, uma promessa de salvação que se converte num pesadelo ainda pior graças ao potencial para a crueldade, para a coerção e para o abuso inerente ao ser humano (reflexo do que termina ocorrendo também no terceiro filme, “Dia dos Mortos”).

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