terça-feira, 17 de novembro de 2020

964 Pinocchio


 Uma jovem amarga certa desolação sentada com displicência na calçada de uma metrópole japonesa –e os transeuntes torcem o pescoço para olhar, com perplexidade, seu comportamento, como certamente estava nos planos do diretor Shozin Fukui, ao engendrar essas filmagens em ruas movimentadas. Essa jovem chamada Himiko (a ótima Onn Chan), logo, ganha a companhia de um estranho (Hage Suzuki) ingênuo e nada inteligível, a lembrar um débil mental, que ela acolhe. Tal estranho, apelidado de Pinocchio, é na realidade uma espécie da autômato para fins sexuais (!), descartado pelos donos por sua pouca eficiência. Noutro lugar, o chefe da empresa que o projetou deseja reavê-lo a fim de manter o caráter sigiloso de seu trabalho, e espalha pela cidade alguns agentes em busca do fugitivo.

Pinocchio, contudo, mora agora no subsolo de uma fábrica abandonada com Himiko, que é uma sem-teto e com a qual aprenderá certos comportamentos essenciais à civilização, conseguindo construir com ela um vínculo humano, talvez, tarde demais.

É preciso agarrar-se à premissa assim esboçada para tentar pescar algum indício de significado e linearidade neste trabalho essencialmente experimental perpetrado pelo diretor Shozin Fukui, onde ele parece moldar um conto de fadas grotesco, deturbado, nauseante e perturbador, de princípios básicos narrativos até bastante similares com “A.I. Inteligência Artificial” que Steven Spielberg só iria lançar exatos dez anos depois –“964 Pinocchio” é de 1991!

Nome recorrente do cinema experimental japonês, Shozin Fukui realizou aqui um exemplar do pouco palatável sub-gênero ‘cyberpunk’ –onde a tecnologia era vista como um elemento de questionáveis capacidades transformadoras impostas ao ser humano no que tange à contundência visualmente atroz das mutações físicas –num trabalho que prima por uma série de escolhas técnicas que o distinguem: Até então, este gênero (dos mais alternativos no cinema japonês) não dispunha de exemplares realizados à cores, por exemplo.

“964 Pinocchio” começa com uma trama pontuada de pequenas bizarrices (com momentos, inclusive que podem remeter a alguns trabalhos do polonês Andrzej Zulawski) e imbrica pelo que parece ser uma fugaz auto-descoberta, um esforço em caminhar além da alienação, para aos poucos converter-se num tratado atordoante de cinema surrealista, com soluções finais capazes de deixar qualquer um boquiaberto tamanho seu nível de non-sense. Se haviam intenções de referenciar “Pinóquio”, de Walt Disney, para além de seu pouco justificado título, essas intenções se perdem no fluxo ininterrupto de sequências chocantes a envolver toda sorte de repugnância humana, com torturas físicas e psicológicas, diversos momentos onde os personagens agonizam despropositadamente, loucura generalizada e uma cena em particular (a de um acesso interminável de vômito numa estação) de embrulhar o estômago.

Fazendo um paralelo com “Blade Runner” –clássico que pode ter influenciado este trabalho de Fukui –podemos enxergar o desafortunado Pinocchio como uma espécie de replicante, desejoso de romper os grilhões impostos por seus criadores e vagar num mundo em busca de compreensão e preenchimento, assim como Roy Batty (o personagem de Rutger Hauer) foge a fim de encontrar meios para, de fato, viver. Na restrição orçamentária atroz que experimenta, e na pouca disposição para mastigar informações ao público, Fukui não deixa claro o que exatamente Pinocchio é (um clone? Um andróide? Um ser artificial feito à imagem e semelhança do Homem?) embora ele desenvolva emoções e apareça sangrando, por exemplo; as poucas, breves e elípticas cenas nesse sentido, surgem no vertiginoso prólogo. Ainda menos claro, é seu desfecho, quando, acometido de um dos surtos de histeria mais extremos e inacreditáveis do cinema moderno, Pinocchio percorre desembestado por toda cidade –sequência ininterrupta que consome boa parte da duração de seu terço final, assim como boa parte da paciência do expectador –e acaba nas dependências da aparente fábrica onde foi feito. Após um sangrento e mambembe acerto de contas com seus inventores –o confronto da criatura com o criador, e em última instância, do homem ensanguentado e mundano com o arrogante indivíduo superior que lhe deu vida –Pinocchio e Himiko se defrontam, ambos, com uma finitude inescapável registrada nas cenas finais da forma mais incabível e propositadamente caricata que se pode imaginar.

Diferente da grande obra de Ridley Scott, aqui a trajetória de dor e inevitável destruição de seu protagonista artificial desperta poucos devaneios existenciais no expectador, provavelmente porque, diante de momentos tão exasperantes, francamente incômodos e deliberadamente grotescos, tudo o que resta fazer ao fim é respirar aliviado.

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