quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Boca


 Embora a produção “Boca”, de 1994, seja bastante desconhecida do público de hoje, há uma chance de alguns expectadores confundirem-na com esta produção de 2010: Se o filme dos anos 1990 era uma realização erótica de Zalman King filmada no Brasil (e que reaproveitava cenas extraídas da raríssima produção dirigida por Walter Avancini, adaptada de Nelson Rodrigues e estrelada por Tarcísio Meira, anos antes), a obra de 2010, dirigida por Flávio Frederico é, por sua vez, uma versão cinematográfica da autobiografia de Hiroito de Moraes que intitulou-se Rei da Boca do Lixo, nos anos 1960.

Seu protagonista, vivido com primoroso senso de astúcia e periculosidade pelo talentoso Daniel de Oliveira, surge na primeira cena na esteira dos vícios que o dominaram em sua trajetória, e que constituíram, em grande medida, sua derrocada.

Característico do cinema brasileiro profundamente autoral da última década (não despido, porém, de intenções notadamente comerciais), “Boca” é abstrato na trama factual que relata: A ascensão e queda de Hiroito, iniciada nos anos 1950, ainda jovem, a descobrir suas irreprimíveis aptidões, primeiro a prostituição –o que o leva a tornar-se um gigolô, e dono de um prostíbulo no bairro da boemia paulistana chamado Boca do Lixo –e depois, o vício –em bebidas alcoólicas, depois cocaína –e, sem dúvida, sua sanha irreprimível por violência –que logo o tornaria um dos homens mais temidos do local.

Ao redor deste personagem principal tornado tão catalisador pela narrativa –a despeito dos flagras de psicopatia, de irredutibilidade e de narcisismo constantes –estão os coadjuvantes que sedimentam seu caminho: A esposa, ex-prostituta, com quem constrói um relacionamento ardente (Hermila Guedes), fadado a desbotar; o melhor amigo, pivô de mesquinhas traições futuras (Milhem Cortaz, sempre ótimo); o aliado inicial no tráfico de drogas (Jefferson Brasil) mais tarde convertido em feroz oponente; o garotinho órfão que Hiroito adota (Ryan Gabriel), em oposição aos seus instintos carrascos; o delegado de polícia corrupto (o lendário Paulo César Peréio), ora parceiro em armações, ora inimigo declarado; a mescla de prostituta e pistoleira (Leandra Leal) que lhe auxilia em suas vinganças; e o jovem motorista (Maxwell Nascimento) a aparecer providencialmente para oferecer ajuda e subserviência.

Evocando facetas nem sempre harmoniosas de cinema, “Boca” remete aos épicos intimistas nacionais (“Cidadede Deus”, “Madame Satã”) tendenciosamente inclinados a romantizar o crime e o tráfico, bem como os filmes gangsteres hollywoodianos (na postura desafiadora e prepotente do protagonista sempre de arma em punho) e ao admirável nível qualitativo cinematográfico ao qual o Brasil chegou na última década, com obras, como esta, a ostentar excelência técnica e artística em suas mais diversas frentes.

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