sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Mar Aberto


 Filmado com a mais modesta das câmeras digitais portáteis, o pequeno filme dirigido por Chris Kentis oferece ao expectador nada mais que a imagem em sua resolução periclitante. Nada de alegorias ou reflexões. Nada de truques cênicos ou simbologias. Um conto de aflição e desamparo onde o beco sem saída é uma situação explorada em toda sua desolação inevitável.

O início afirma basear-se em fatos reais, mas a ponderação em torno do que se vê logo nos leva a perceber que essa afirmação é escorregadia: A situação de perigo em si é um tanto quanto genérica –muitas são as pessoas extraviadas em alto-mar –e ao focar mais de 90% de sua narrativa no casal em apuros, o filme de Kentis especula muitas das circunstâncias dramáticas que vemos em cena, uma vez que não há como apurar registros de como deu-se o sofrimento dessas pessoas estando onde estavam.

A despeito desse questionamento, o filme eleva o perigo genérico de seus protagonista para além de uma mera estatística –aproximar-se deles, significa conferir relevo, identidade e empatia ao seu drama –e ao moldar com isso um filme todo espartano, amparado em restrições tremendas de produção, debruçado na atuação de dois únicos intérpretes no que pode ser considerado um único cenário, Kentis usa de suas limitações para fazer um trabalho árduo, árido e objetivo.

A câmera que registra o filme aparenta ser num estilo found-footage (embora não seja), tão em voga naquela época, em meados de 2004, tendo anos antes “A Bruxa de Blair” feito enorme sucesso e difundido, sobretudo em obras de terror, essa nova linguagem. Porém, o diretor Chris Kentis apenas registra os personagens com o máximo possível de espontaneidade a que esse registro solto proporciona. Para sua sorte, os protagonistas são muito bons: Blanchard Ryan é Susan, e Daniel Travis é Daniel. Ambos são casados e, no momento em que os vemos, estressados um com o outro. Eles não brigam, mas não deixam de perceber animosidades que, em algum momento, haverão de minar a relação. Cientes disso, resolvem passar férias juntos, e com isso vão a um resort tropical no Caribe, onde agendam uma excursão em grupo ao alto-mar.

Durante o mergulho, um mal-entendido entre os funcionários do barco os leva a errar a contagem de passageiros, levando-os a esquecer Susan e Daniel enquanto estão no fundo do mar –em parte também por conta da indisposição bem norte-americana do casal em interagir com as outras pessoas, fazendo-os passar despercebidos.

Está então estabelecida a situação básica que irá perdurar por todo o filme: Susan e Daniel foram largados em pleno oceano, com equipamentos de mergulho que durarão poucas horas, sem absolutamente nenhuma alternativa exceto conter o pânico que ameaça tragá-los a medida que percebem estarem sendo visados por cardumes de tubarões.

A grande sacada do filme de Kentis é extrair sua força justamente de sua simplicidade: “Mar Aberto” não tem personagens coadjuvantes aos quais se presta tanta atenção quanto seus protagonistas, e mesmo deles sabemos apenas o básico; que são um casal e que estão numa encrenca dos diabos. Sequer muitas alternativas a narrativa se permite oferecer aos personagens principais e ao expectador: O bom entendedor pode perfeitamente presumir o desfecho amargo que ocorrerá após os aflitivos oitenta minutos de duração.

A competência de “Mar Aberto” está na forma com que esmiuça as percepções a pairar sobre sua situação básica: Urbanizados, modernizados e definidos por suas posturas profissionais, Susan e Daniel são arremessados num cenário natural no qual não demoram a descobrirem-se indefesos –teimoso, Daniel demora um pouco mais a encontrar a própria vulnerabilidade, mascarando-a aos olhos da esposa com conhecimentos fajutos acerca de pessoas perdidas em alto-mar que captou de algum documentário que assistiu.

Quando as máscaras de civilidade caem, a dupla começa a experimentar os estágios de seu caminho rumo à aceitação do irremediável: Tentam elaborar planos insensatos; brigam ao delegarem culpas redundantes; avistam barcos ao longe com os quais não podem contar; testemunham o avanço de predadores eventuais (tubarões) sem nada poder fazer; veem tempestades chegando e se dissipando; e acompanham o transcorrer das horas enquanto o frio, o cansaço e o desespero irreversivelmente se aproximam.

Um pérola de pura tensão sobre a insignificância do ser humano perante a vastidão esmagadora da natureza, “Mar Aberto”, em sua economia radical de elementos, consegue ser também uma interessante e palpitante análise sobre o o companheirismo em situações-limite.

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