quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Salve-Se Quem Puder (A Vida)


 Como sempre, é um desafio decifrar Jean-Luc Godard. Aqui, em sua primeira obra dos anos 1980, ele dá continuidade ao experimentalismo que marcou sua produção nos anos 1970, compondo uma espécie de diário pessoal em forma de cinema, afinal, é com um protagonista de nome Sr. Godard, interpretado por Jacques Dutronc, que o filme se inicia.

O Sr. Godard é mau-humorado e esnobe, como os franceses em geral e como Jean-Luc Godard em particular –ou assim é a impressão que parecem querer fornecer ao mundo.

O filme, construído com uma narrativa cheia de  alternâncias experimentais de caráter enigmático e, no fim das contas, vazio, acompanha as impressões desse personagem –pois a despeito de levar o nome de seu realizador, ele nada mais é que isso, um personagem –definidas, em grande medida, pela relação com as mulheres. São elas: A atual namorada, Denise (Nathalie Baye), que perde-se em passeios de bicicleta no campo a ponto de ganhar um entrecho só seu, e em discussões filosóficas sobre a desgastada relação; a filha Gabrielle, já nutrindo considerável aversão pelas atitudes do pai, além da personagem-fantasma da autora Marguerite Duras, que nunca aparece, mas mostra-se onipresente, quase uma assombração às considerações autorais do tremendamente misógino Godard.

Ao longo desse percurso conceitual e narrativo –pontuado por intrusivas sequências com velocidade de rotação alterada –Godard oferece um formato episódico, dividindo-o em intertítulos que determinam elementos criativos do cinema em si, como arte e como indústria (a câmera lenta; a vida; o imaginário; o comércio; a música), mas que também determinam muitas características ressaltadas dos personagens que vão aparecendo.

Num determinado ponto, o Godard diretor parece se cansar desse Godard personagem por algum tempo, e transfere o protagonismo para a jovem prostituta interpretada por Isabelle Hupert com quem tem um casual encontro –e durante uma boa parte do filme, ele a acompanha em seu dia-a-dia, flagrando situações tão bizarras quanto surreais (o cliente pervertido que deseja encenar uma conversa cheia de intenções incestuosas com a esposa e a filha: os negociantes que submetem a prostituta Isabelle, junto de uma outra, a uma sessão de submissão e abuso).

Mais cedo ou mais tarde, o filme acaba retomando o personagem Godard, insistindo em cenas que ressaltam sua relação inconstante, insatisfatória e imperfeita com as mulheres, a cidade a vida real e a arte: No relevo de seu traquejo claudicante com todas as coisas, se desenrolam outros dilemas (as relações existenciais de Isabelle com as questões trabalhistas de seu ofício e sua tentativa de alugar uma casa de campo; ou a intenção de Denise em deixar tudo para trás e viajar, na busca por uma fuga).

Como lhe é inerente, o diretor se perde tanto na intenção de ser Godard aos olhos de seu público e crítica que a narrativa de seu filme se fragmenta nos pretensiosos e inúmeros objetivos que ele almeja.

Muitos são os que chegarão ao fim deste “Sauve Qui Peut (La Vie)” com considerações completamente distintas uma da outra acerca do que, de fato, esta obra imprecisa, incoerente e inconstante trata –talvez, na vicissitude de seu propósito (ou na ocultação absoluta dele), Godard trate exatamente disso, da inconstância; um ebuliente esforço artístico que, como num teste psico-técnico, pode ser sobre qualquer coisa, ou sobre coisa nenhuma.

Vai do gosto do freguês...

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