Como sempre, é um desafio decifrar Jean-Luc Godard. Aqui, em sua primeira obra dos anos 1980, ele dá continuidade ao experimentalismo que marcou sua produção nos anos 1970, compondo uma espécie de diário pessoal em forma de cinema, afinal, é com um protagonista de nome Sr. Godard, interpretado por Jacques Dutronc, que o filme se inicia.
O Sr. Godard é mau-humorado e esnobe, como os
franceses em geral e como Jean-Luc Godard em particular –ou assim é a impressão
que parecem querer fornecer ao mundo.
O filme, construído com uma narrativa cheia
de alternâncias experimentais de caráter
enigmático e, no fim das contas, vazio, acompanha as impressões desse
personagem –pois a despeito de levar o nome de seu realizador, ele nada mais é
que isso, um personagem –definidas, em grande medida, pela relação com as
mulheres. São elas: A atual namorada, Denise (Nathalie Baye), que perde-se em
passeios de bicicleta no campo a ponto de ganhar um entrecho só seu, e em
discussões filosóficas sobre a desgastada relação; a filha Gabrielle, já
nutrindo considerável aversão pelas atitudes do pai, além da
personagem-fantasma da autora Marguerite Duras, que nunca aparece, mas
mostra-se onipresente, quase uma assombração às considerações autorais do
tremendamente misógino Godard.
Ao longo desse percurso conceitual e narrativo
–pontuado por intrusivas sequências com velocidade de rotação alterada –Godard
oferece um formato episódico, dividindo-o em intertítulos que determinam
elementos criativos do cinema em si, como arte e como indústria (a câmera
lenta; a vida; o imaginário; o comércio; a música), mas que também determinam
muitas características ressaltadas dos personagens que vão aparecendo.
Num determinado ponto, o Godard diretor parece
se cansar desse Godard personagem por algum tempo, e transfere o protagonismo
para a jovem prostituta interpretada por Isabelle Hupert com quem tem um casual
encontro –e durante uma boa parte do filme, ele a acompanha em seu dia-a-dia,
flagrando situações tão bizarras quanto surreais (o cliente pervertido que
deseja encenar uma conversa cheia de intenções incestuosas com a esposa e a
filha: os negociantes que submetem a prostituta Isabelle, junto de uma outra, a
uma sessão de submissão e abuso).
Mais cedo ou mais tarde, o filme acaba retomando
o personagem Godard, insistindo em cenas que ressaltam sua relação inconstante,
insatisfatória e imperfeita com as mulheres, a cidade a vida real e a arte: No
relevo de seu traquejo claudicante com todas as coisas, se desenrolam outros
dilemas (as relações existenciais de Isabelle com as questões trabalhistas de
seu ofício e sua tentativa de alugar uma casa de campo; ou a intenção de Denise
em deixar tudo para trás e viajar, na busca por uma fuga).
Como lhe é inerente, o diretor se perde tanto
na intenção de ser Godard aos olhos de seu público e crítica que a narrativa de
seu filme se fragmenta nos pretensiosos e inúmeros objetivos que ele almeja.
Muitos são os que chegarão ao fim deste “Sauve
Qui Peut (La Vie)” com considerações completamente distintas uma da outra
acerca do que, de fato, esta obra imprecisa, incoerente e inconstante trata
–talvez, na vicissitude de seu propósito (ou na ocultação absoluta dele),
Godard trate exatamente disso, da inconstância; um ebuliente esforço artístico
que, como num teste psico-técnico, pode ser sobre qualquer coisa, ou sobre
coisa nenhuma.
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