quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Beijo 2348/72


 Embora seja inspirado num episódio real –e aí já se vê indícios da inesperada relevância desta graciosa obra –“Beijo 2348/72” é um trabalho fictício muito beneficiado pelo tom de crítica (ainda que jamais despida de humor) sobre os meandros nada compensadores da justiça trabalhista dos anos 1970 (época em que a trama se sucede), pelo timing cômico impecável de Fernanda Torres, pela beleza sempre acachapante de Maitê Proença e, sobretudo, pela revelação um tanto tardia do ator Chiquinho Brandão, falecido precocemente um ano após a realização deste filme, em 1991.

Aqui, Chiquinho exerce brilhantemente um tipo de humor mais frequentemente associado pelo público à Renato Aragão, o Didi dos Trapalhões, embora a condução do filme dirigido pelo então estreante Walter Rogério (mais tarde, realizador do injustiçado e impagável “Olhos de Vampa”) gradualmente transforme o filme menos na comédia descompromissada que ele aparentava ser no início e mais numa obra engraçada sim, mas atenta e consciente dos revezes desiguais a pesar sobre o cidadão médio brasileiro.

O desprendido Nourival (Chiquinho, ótimo no papel) acaba flertando, de forma meio relutante, com a acanhada Claudete (Fernanda) num baile de subúrbio. Conversa vai, conversa vem, ela lhe arruma uma vaga na fábrica de tecelagem onde trabalha, crente de que isso permitirá que o relacionamento vá para frente. Entretanto, como ocorre a quase todos os homens do lugar, Nourival cai de desejos pela colega de Claudete, a belíssima Catarina (Maitê, sempre uma aparição!) que é casada, apesar de certa reciprocidade para com os avanços atrapalhados de Nourival.

Indignada com seu papel absolutamente desfavorável nesse triângulo amoroso, Claudete denuncia Nourival, afirmando que ele e Catarina se beijaram em local de trabalho –o que é contra as leis da empresa –e chega a servir de testemunha durante a primeira parte da audiência. E a sucessão de audiências, cada vez mais rumo ao Tribunal Superior do Trabalho, atravessa todo o filme na forma de um fio narrativo que termina consolidando sua trama como o flashback que a remonta.

Assim, vemos que Nourival e Catarina são demitidos por justa causa enquanto o processo –constantemente recorrido por Nourival, sentindo-se lesado –arrasta-se por anos. É nesse transcorrer de tempo que o diretor alterna o afetivo e o social com uma mescla de ironia e carinho pelo protagonista: Por um lado, ele acompanha os anseios de Nourival por almejar uma esperança de envolvimento com Catarina, a despeito dela ser casada com o grosseiro Zeca (Miguel Falabella), sempre relegados à inevitável desilusão; por outro, ele registra o caminho percorrido pelo processo em si (esmiuçado em encenações que parecem irreais tamanha a burocracia e o vocabulário empostado e ininteligível discorrido), sempre paralelo à trajetória de Nourival.

Em algum momento, farta do marasmo de seu casamento, Catarina procura por Nourival, mas ele há tempos já não mora na pensão que antes ocupava; o desemprego o levou a virar um morador de rua e, logo depois, ele está ganhando trocados como catador de lixo. É nesse trecho que ele reencontra Claudete, agora casada com Alvarino (Ary Fontoura), supervisor do setor da fábrica onde todos eles trabalhavam. De uma comédia de despretensiosas características românticas, “Beijo 2348/72” se converte numa agridoce denúncia da lentidão dos processos trabalhistas no Brasil, ineficientes em levar a justiça de fato a quem mais precisa dela, o cidadão comum: Quando finalmente o ganho de causa vai para o ex-operário Nourival, quatro anos já haviam se passado, tornando irrisória qualquer compensação que ele poderia usufruir a partir dali –o romance com Catarina, se tinha chances de vingar, jamais se concretiza (salvo em momentos delirantes do próprio Nourival), e o emprego, bem como uma certa dignidade, ele já está bem longe de recuperar, sobrevivendo de sub-empregos; numa das últimas cenas, seu último encontro com Catarina, sem que ela própria perceba, é vestido de gorila numa apresentação circense onde posa para fotos junto de crianças.

Feito por inúmeros talentos afrente e atrás das câmeras, “Beijo 2348/72“ busca o sorriso do expectador, ainda que retrate uma triste e desoladora realidade.

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