Embora os anos 1980 –em especial, sua primeira metade –tivessem predominância da pornochanchada no circuito de cinema nacional, nunca faltaram diretores que levassem olhares distintos, dotados de comprometimento, à essa cena artística.
Ao lado de Carlos Reichenbach, Bruno Barreto
foi um desses diretores cujo mérito foi moldar uma observação cheia de
significado e propriedade da classe média-baixa de então; sua obra mais
representativa nesse sentido é, até hoje, “Romance da Empregada”, estrelado por
uma exuberante, inquieta e frequentemente espetacular Betty Faria.
Ela vive Fausta, empregada doméstica moradora
de uma favela cuja rotina é pegar diariamente o trem numa estação, rumar para a
Zona Sul onde trabalha limpando a casa de uma madame que não lhe economiza em
desaforos (Tamara Taxman).
A vida de Fausta tem a textura vívida e
corriqueira de tantas mulheres batalhadoras brasileiras: Tem um marido
incorrigível, João (Daniel Filho) que só sai de sua inércia para encher a cara
e pular a cerca com vizinhas desavergonhadas; frequenta as cabeleireiras para
emular o corte de cabelo mais recente de Tina Turner (!); e mora num barraco
lastimável sempre ameaçado de sumir numa enchente ao primeiro sinal de chuva.
A vida de Fausta é dura, e ela luta contra seus
revezes dia-a-dia. No seu ir e vir na estação, ela –que, diga-se de passagem, é
deliciosa num nível improvável para uma assalariada favelada, cortesia da
beleza e da formosura de Betty Faria –chama a atenção do velho Zé da Placa (o
fabuloso Brandão Filho) que, apesar de ter idade para ser seu pai, lhe
conquista a atenção com mimos e presentes.
Fausta, cuja meta de vida era uma vã esperança
de pagar um terreno e uma casa que a permitissem deixar seu marido imprestável
e o barraco onde moram, enxerga em Zé da Placa uma oportunidade de, por meios
tortos, alcançar seus objetivos –ou, pelo menos, alguns deles. Não obstante os
comentários cheios de acidez e alguma maldade que brotam ao redor deles, Fausta
e Zé da Placa constroem um, digamos, relacionamento. Ela se torna uma amiga
bastante íntima dele, ciente do desejo atávico que o idoso expressa por ela, e
desejosa de que ele, com o dinheiro que tem guardado, lhe ajude na casa e no
terreno que quer comprar; nesse meio-tempo, Fausta usufrui dele as regalias de
praxe que uma bela e jovem mulher pode arrancar de um senhor apaixonado e
excitado com dinheiro –ela ganha presentes todos os dias, arrasta-o no forró
com todas as despesas pagas (por ele!), vai à praia de Paquetá e assim por
diante.
Enquanto isso, João sofre um acidente no
trabalho e quebra o pé, o que o torna ainda mais inconveniente (e certamente
mais descartável) aos olhos da nada tolerante Fausta.
Primeiro roteiro para cinema do dramaturgo Naum
Alves de Souza –no qual identifica-se pequenas redundâncias de quem ainda está
no começo –“Romance da Empregada” guarda lampejos inspirados na dinâmica de
personagens à qual se dedica do início ao fim: Fausta –a protagonista cujo nome
já remete à “Fausto”, de Goethe, poema onde o protagonista perpetra um pacto
com Mefistófeles, a encarnação do mal –jamais esconde, em seus modos brejeiros
e naturalmente brutalizados, o interesse, necessidade até, pelo dinheiro do
qual o velho Zé da Placa dispõe e com o qual ela pode enfim melhorar de vida,
embora hajam nela momentos de disposição e carinho genuínos. No retrato
constante, empenhado e árido das celeumas domésticas, sentimentais, sociais e
práticas que a personagem experimenta, e na atuação nunca unilateral de Betty
Faria, Fausta jamais cai numa caricatura vilipendiada, ou numa pedante
caracterização indefesa.
Ela pode ser interesseira, sim, mas também é
genuinamente encantadora e carismática. Diante do acúmulo de problemas tão
comuns ao povo brasileiro, Fausta reage com certa experiência e cinismo, mas
também com destemor e alguma nobreza.
“Qualquer coisa... eu começo tudo de novo!”
afirma ela, na sensacional cena final, em meio a uma enchente de propósitos
muito alegóricos, onde tudo o que poderia acontecer de errado, acontece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário