segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Romance da Empregada


 Embora os anos 1980 –em especial, sua primeira metade –tivessem predominância da pornochanchada no circuito de cinema nacional, nunca faltaram diretores que levassem olhares distintos, dotados de comprometimento, à essa cena artística.

Ao lado de Carlos Reichenbach, Bruno Barreto foi um desses diretores cujo mérito foi moldar uma observação cheia de significado e propriedade da classe média-baixa de então; sua obra mais representativa nesse sentido é, até hoje, “Romance da Empregada”, estrelado por uma exuberante, inquieta e frequentemente espetacular Betty Faria.

Ela vive Fausta, empregada doméstica moradora de uma favela cuja rotina é pegar diariamente o trem numa estação, rumar para a Zona Sul onde trabalha limpando a casa de uma madame que não lhe economiza em desaforos (Tamara Taxman).

A vida de Fausta tem a textura vívida e corriqueira de tantas mulheres batalhadoras brasileiras: Tem um marido incorrigível, João (Daniel Filho) que só sai de sua inércia para encher a cara e pular a cerca com vizinhas desavergonhadas; frequenta as cabeleireiras para emular o corte de cabelo mais recente de Tina Turner (!); e mora num barraco lastimável sempre ameaçado de sumir numa enchente ao primeiro sinal de chuva.

A vida de Fausta é dura, e ela luta contra seus revezes dia-a-dia. No seu ir e vir na estação, ela –que, diga-se de passagem, é deliciosa num nível improvável para uma assalariada favelada, cortesia da beleza e da formosura de Betty Faria –chama a atenção do velho Zé da Placa (o fabuloso Brandão Filho) que, apesar de ter idade para ser seu pai, lhe conquista a atenção com mimos e presentes.

Fausta, cuja meta de vida era uma vã esperança de pagar um terreno e uma casa que a permitissem deixar seu marido imprestável e o barraco onde moram, enxerga em Zé da Placa uma oportunidade de, por meios tortos, alcançar seus objetivos –ou, pelo menos, alguns deles. Não obstante os comentários cheios de acidez e alguma maldade que brotam ao redor deles, Fausta e Zé da Placa constroem um, digamos, relacionamento. Ela se torna uma amiga bastante íntima dele, ciente do desejo atávico que o idoso expressa por ela, e desejosa de que ele, com o dinheiro que tem guardado, lhe ajude na casa e no terreno que quer comprar; nesse meio-tempo, Fausta usufrui dele as regalias de praxe que uma bela e jovem mulher pode arrancar de um senhor apaixonado e excitado com dinheiro –ela ganha presentes todos os dias, arrasta-o no forró com todas as despesas pagas (por ele!), vai à praia de Paquetá e assim por diante.

Enquanto isso, João sofre um acidente no trabalho e quebra o pé, o que o torna ainda mais inconveniente (e certamente mais descartável) aos olhos da nada tolerante Fausta.

Primeiro roteiro para cinema do dramaturgo Naum Alves de Souza –no qual identifica-se pequenas redundâncias de quem ainda está no começo –“Romance da Empregada” guarda lampejos inspirados na dinâmica de personagens à qual se dedica do início ao fim: Fausta –a protagonista cujo nome já remete à “Fausto”, de Goethe, poema onde o protagonista perpetra um pacto com Mefistófeles, a encarnação do mal –jamais esconde, em seus modos brejeiros e naturalmente brutalizados, o interesse, necessidade até, pelo dinheiro do qual o velho Zé da Placa dispõe e com o qual ela pode enfim melhorar de vida, embora hajam nela momentos de disposição e carinho genuínos. No retrato constante, empenhado e árido das celeumas domésticas, sentimentais, sociais e práticas que a personagem experimenta, e na atuação nunca unilateral de Betty Faria, Fausta jamais cai numa caricatura vilipendiada, ou numa pedante caracterização indefesa.

Ela pode ser interesseira, sim, mas também é genuinamente encantadora e carismática. Diante do acúmulo de problemas tão comuns ao povo brasileiro, Fausta reage com certa experiência e cinismo, mas também com destemor e alguma nobreza.

“Qualquer coisa... eu começo tudo de novo!” afirma ela, na sensacional cena final, em meio a uma enchente de propósitos muito alegóricos, onde tudo o que poderia acontecer de errado, acontece.

Um trabalho destituído da promiscuidade e do sexo que predominava na produção nacional de então, onde o diretor Barreto nutre excitação mesmo pelas interpretações dos atores em cena, e ostenta vulgor pela própria narrativa que constrói.

Nenhum comentário:

Postar um comentário