O título assinado por Claude Chabrol, dentre os iniciais da Nouvelle Vague Francesa, diferente das obras bem mais reconhecidas de François Truffaut e Jean-Luc Godard, troca a ambientação urbana por uma província campestre nos interiores da França.
É para lá que vai François (Jean-Claude Brialy,
de “Desejos Secretos”), rapaz crescido ali, cujas razões para seu retorno
residem na doença (tuberculose, muito possivelmente) que ele contraiu, e que o
fizeram assim nostálgico para com o lugar onde cresceu.
Lá, François não está atrás de piedade, e nem a
narrativa de Chabrol centraliza assim seu suplício –os indícios da doença de
François são imprecisos a ponto de passarem despercebidos por expectadores
desatentos. Ele retoma o convívio com o melhor amigo dos tempos de juventude,
Serge (Gérard Blain, de “O Boulevard do Crime”), e nessa dinâmica, Chabrol
encontra o eixo em torno do qual seu filme haverá de girar: François e Serge
são quase opostos e é assim que, ao menos o segundo, os reconhece; François foi
para a cidade grande e lá aprendeu sofisticação a ponto de voltar inconfundível
dos caipiras locais; Serge ficou por lá, e lá adquiriu todas as facetas da
mediocridade –arrumou um sub-emprego, engravidou a namorada, e as duas perdas
sucessivas de gravidez dela o empurraram irreversivelmente ao alcoolismo.
Há escárnio mal disfarçado toda vez que Serge
encontra François, travestido de camaradagem em função das condutas sociais,
contudo, quando o vinho lhe acarreta violenta sinceridade, Serge põe tudo às
claras.
Dessa dinâmica, Chabrol ocupa todo o filme,
numa denúncia de despojamento então inovador para os padrões púdicos do cinema
comercial do fim da década de 1950: Flagra-se com frequência a rotina de Serge
às voltas com garrafas e copos cheios, e essa mise-en-scene ajuda muito a relacionar ao seu alcoolismo todos os
problemas que nos são revelados depois –a agressividade rude com sua demasiada
tolerante esposa Yvonne (Michèle Méritz), o desleixo para com os problemas
reais, as bravatas do que um dia vai fazer mas nunca faz.
Numa herança reconhecível do neo-realismo,
François, o protagonista por assim dizer, paira pelas circunstâncias encenadas
como uma mera testemunha de tudo, com frequência, imbuído de uma impotência que
impede seus atos ou suas palavras de serem relevantes, ou determinantes ao que
acontecerá –isso pelo menos, até a segunda metade do filme.
A partir daí, quando a postura de François lhe
confronta com as consequências de sua presença, descobrimos novas contundências
reservadas por Claude Chabrol: A relação com a jovem Marie (a linda Bernadette
Lafont, de “A Mãe e A Puta”), que no princípio parecia adquirir tintas
corriqueiras de um romance de verão, caminha para resultados muito mais
sórdidos, envolvendo o pai de criação dela (também ele um alcoólatra), a
presença adúltera de Serge, e a promiscuidade latente da própria Marie. A
personagem que parece emergir com mais inocência dessa podridão escondida nos
lares interioranos é mesmo Yvonne, prestes a dar à luz ao terceiro filho de Serge.
Como os outros dois morreram de complicações no
parto, toda a ignorante e rústica comunidade acredita que o mesmo acontecerá a
essa criança, e por isso não atribuem à Yvonne qualquer cuidado maior,
incluindo Serge. É François, já próximo do trecho final do filme, e já
submetido à pecha de ‘pária da cidade grande’ quem deve sacrificar a própria
saúde, e perambular pela fria noite de inverno, em busca de um médico e de
Serge, quando Yvonne finalmente entrar em trabalho de parto.
Escandaloso à época de seu lançamento pela
maneira espontânea com que submetia o público a temas árduos e perturbadores,
como alcoolismo, violência doméstica, incesto e abuso parental, “Nas Garras do
Vício”, a despeito de soar inevitavelmente ingênuo nos dias de hoje, foi um dos
pilares contundentes com os quais a Nouvelle Vague Francesa foi iniciada –se
“Os Incompreendidos” e “Acossado” propunham a revolução estética como ela ficou
conhecida, a obra de Chabrol abre mão de características mais reconhecíveis
para uma incursão inovadora e audaciosa em temas improváveis e espinhosos.
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