terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Nas Garras do Vício


 O título assinado por Claude Chabrol, dentre os iniciais da Nouvelle Vague Francesa, diferente das obras bem mais reconhecidas de François Truffaut e Jean-Luc Godard, troca a ambientação urbana por uma província campestre nos interiores da França.

É para lá que vai François (Jean-Claude Brialy, de “Desejos Secretos”), rapaz crescido ali, cujas razões para seu retorno residem na doença (tuberculose, muito possivelmente) que ele contraiu, e que o fizeram assim nostálgico para com o lugar onde cresceu.

Lá, François não está atrás de piedade, e nem a narrativa de Chabrol centraliza assim seu suplício –os indícios da doença de François são imprecisos a ponto de passarem despercebidos por expectadores desatentos. Ele retoma o convívio com o melhor amigo dos tempos de juventude, Serge (Gérard Blain, de “O Boulevard do Crime”), e nessa dinâmica, Chabrol encontra o eixo em torno do qual seu filme haverá de girar: François e Serge são quase opostos e é assim que, ao menos o segundo, os reconhece; François foi para a cidade grande e lá aprendeu sofisticação a ponto de voltar inconfundível dos caipiras locais; Serge ficou por lá, e lá adquiriu todas as facetas da mediocridade –arrumou um sub-emprego, engravidou a namorada, e as duas perdas sucessivas de gravidez dela o empurraram irreversivelmente ao alcoolismo.

Há escárnio mal disfarçado toda vez que Serge encontra François, travestido de camaradagem em função das condutas sociais, contudo, quando o vinho lhe acarreta violenta sinceridade, Serge põe tudo às claras.

Dessa dinâmica, Chabrol ocupa todo o filme, numa denúncia de despojamento então inovador para os padrões púdicos do cinema comercial do fim da década de 1950: Flagra-se com frequência a rotina de Serge às voltas com garrafas e copos cheios, e essa mise-en-scene ajuda muito a relacionar ao seu alcoolismo todos os problemas que nos são revelados depois –a agressividade rude com sua demasiada tolerante esposa Yvonne (Michèle Méritz), o desleixo para com os problemas reais, as bravatas do que um dia vai fazer mas nunca faz.

Numa herança reconhecível do neo-realismo, François, o protagonista por assim dizer, paira pelas circunstâncias encenadas como uma mera testemunha de tudo, com frequência, imbuído de uma impotência que impede seus atos ou suas palavras de serem relevantes, ou determinantes ao que acontecerá –isso pelo menos, até a segunda metade do filme.

A partir daí, quando a postura de François lhe confronta com as consequências de sua presença, descobrimos novas contundências reservadas por Claude Chabrol: A relação com a jovem Marie (a linda Bernadette Lafont, de “A Mãe e A Puta”), que no princípio parecia adquirir tintas corriqueiras de um romance de verão, caminha para resultados muito mais sórdidos, envolvendo o pai de criação dela (também ele um alcoólatra), a presença adúltera de Serge, e a promiscuidade latente da própria Marie. A personagem que parece emergir com mais inocência dessa podridão escondida nos lares interioranos é mesmo Yvonne, prestes a dar à luz ao terceiro filho de Serge.

Como os outros dois morreram de complicações no parto, toda a ignorante e rústica comunidade acredita que o mesmo acontecerá a essa criança, e por isso não atribuem à Yvonne qualquer cuidado maior, incluindo Serge. É François, já próximo do trecho final do filme, e já submetido à pecha de ‘pária da cidade grande’ quem deve sacrificar a própria saúde, e perambular pela fria noite de inverno, em busca de um médico e de Serge, quando Yvonne finalmente entrar em trabalho de parto.

Escandaloso à época de seu lançamento pela maneira espontânea com que submetia o público a temas árduos e perturbadores, como alcoolismo, violência doméstica, incesto e abuso parental, “Nas Garras do Vício”, a despeito de soar inevitavelmente ingênuo nos dias de hoje, foi um dos pilares contundentes com os quais a Nouvelle Vague Francesa foi iniciada –se “Os Incompreendidos” e “Acossado” propunham a revolução estética como ela ficou conhecida, a obra de Chabrol abre mão de características mais reconhecíveis para uma incursão inovadora e audaciosa em temas improváveis e espinhosos.

Essa busca pela verdade nua e crua termina afetando o próprio filme; ao fim, é negado, ao expectador e aos personagens, uma ideia de redenção ou de compensação, substituída por um breve instante de tal sutileza que mal chega a servir de consolo.

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