sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O Lixo e O Sonho

 


Há algo de indiscutivelmente neo-realista no longa-metragem de estréia da diretora escocesa Lynne Ramsay (de “Precisamos Falar Sobre O Kevin”); assim com havia algo de neo-realista no clássico inglês “Kes”, de Ken Loach, o filme que o trabalho de Ramsay mais parece emular: O aparente afinco no registro de uma realizade nua e crua em contraponto à redefinição artística dessa mesma realidade, e a postura questionadora para com a própria dramaturgia que a retrata. “O Lixo e O Sonho” versa sobre os subúrbios pobres, úmidos e desolados de Glasgow, na Escócia do fim dos anos 1970.

O fio narrativo que representa o ponto de partida desse olhar é enganador ao dar a atenção ao personagem de um garotinho que morre afogado no imundo canal das redondezas logo nas primeiras cenas; o verdeiro protagonista, descobriremos, é James Gillespie (o jovem William Eadie), o menino que, sem querer, terminar por afogar o coleguinha durante uma brincadeira mais rude. Tormento que assombrará o personagem principal durante todo filme, a morte mostrada no início é um simbolismo da atmosfera sombria que permeia toda aquela vizinhança do início ao fim da obra. Os coletores de lixo estão em greve, por isso, a periferia imerge em pilhas de sacolas de lixo, toneladas de entulho e poluição, convertendo a área num cenário triste, sujo e desagradável. Lá, James mora com seu pai (Tommy Flanagan, de “Gladiador” e “Guardiões da Galáxia Vol. 2”), sua mãe (Mandy Matthews), sua irmã mais velha e a caçula. Lá, ele também convive com os outros moradores; jovens que como ele experimentam a falta de perspectiva do proletariado da classe-baixa, que derramam assim suas neuroses precoces em bullying indiscriminado contra os menores e os mais indefesos.

Um desses indivíduos mais indefesos é Margaret (Leanne Mullen), garota cuja ausência dos óculos –tirados dela e logo extraviados nas águas do canal –a tornam quase cega.

Compadecido dela, e dos abusos frequentes que ela ora aceita ora recebe forçadamente dos truculentos garotos locais, James se torna seu amigo –o que leva à uma poética cena onde os dois jovens estão nus numa banheira, lavando seus cabelos para livrarem-se do incômodo dos piolhos. Diferente de qualquer resultado se a direção coubesse à um homem, Lynne Ramsay consegue abster completamente o teor sexual dessa sequência, a despeito das obviedades e torná-la incrivelmente inocente e lúdica.

“O Lixo e O Sonho” –ou “Ratcatcher”, isto é “Catador de Ratos”, tradução bem mais honesta à realidade do filme –é uma esteira de desabonos flagrados por seu pequeno protagonista. Como na escola do neo-realismo italiano, cabe a ele ser testemunha das mazelas reproduzidas em cena, e converter-se na sua postura estóica, em uma figura representativa do drama humano assim  materializado. As relações de altos e baixos com os amigos, a pobreza intermitente, os ásperos percalços familiares, e diversas outras experiências formam o amplo expectro de comentário social que Lynne Ramsay vislumbrou a partir da força subjetiva de suas imagens. Ela confronta essa contundência com breves momentos iluminados, como quando James visita as construções de uma moradia melhor, mais limpa, digna e ensolarada, que ousa sonhar ser o próximo lar para sua família.

Há uma ligeira incerteza se esse é o final que vemos de fato, ou se nada mais é que um úlitmo sonho acometido a um James moribundo quando este se joga no rio, em busca do mesmo desfecho amargo que ele inadvertidamente deu ao inocente garotinho do começo.

São essas percepções extremamente despreocupadas com as convenções de um cinema corriqueiro para as massas que transformam a obra de Lynne Ramsay em algo tão desigual.

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