quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Dias de Ira


 O trabalho astuto e inventivo do diretor Tonino Valerii bebe muito da fonte de “Rio Vermelho”, de Howard Hawks: Como na obra clássica, temos a trama a girar em torno de uma relação mentor e pupilo que é quase uma dinâmica pai e filho; e como lá, essa relação, cerne indubitável do filme, ganha ares visíveis de rivalidade e antagonismo a medida que as  discrepâncias entre os dois personagens  vão se enfatizando, sobrepujando a camaradagem que os uniu.

Chega, numa cidadezinha poeirenta chamada Clifton, no Arizona, o temido e veterano pistoleiro Frank Talby (o grande Lee Van Cleef). Colhido de admiração por ele, o jovem Scott Mary (Giuliano Gemma) o segue a todo lugar. Talby nota que, por sua humilde ocupação como limpador do estábulo local, o jovem Scott é tratado com desdém e desprezo por todos.

Entretanto, diante de circunstâncias favoráveis, Talby concorda em levar Scott consigo e ensiná-lo a ser um pistoleiro tão hábil e temido quanto ele.

Eventualmente, os caminhos tortuosos e ilícitos da dupla os conduzem de volta à Clifton, onde Talby já alimenta outros planos: A consciência da chegada da velhice o leva a perceber que seu vigor para duelos mortais em breve irá embora, e com isso, ele almeja valer-se de sua fama para tomar para si a propriedade do saloon local.

O assassino do oeste, outrora um aventureiro alheio às leis, agora quer se converter num homem de negócios –reflexão que, volta e meia, pontuava alguns trabalhos do faroeste spaghetti.

Porém, Talby depende, cada vez mais, da lealdade de Scott. Moldado agora em um hábil pistoleiro, Scott retorna à Clifton completamente diferente do rapaz omisso e mal-tratado de antes: É agora um homem valente, supino e nem um pouco disposto a levar desaforo para casa –modificações de índole promovidas com belas nuances pela ótima atuação de Giuliano Gemma.

Mas, os elementos que podem colocar Talby e Scott um contra o outro já estavam lá desde o princípio: Murph (Walter Rilla), o benevolente acolhedor de Scott durante sua época como zelador do estábulo, havia sido xerife em outra cidade, e foi o homem que mais perto chegou de superar Talby. Agora, no entanto, com seu poder sobre a cidade crescendo cada vez mais, Talby se permite enxergar-se como invencível; e tal soberba o leva a enxergar inimigos em todo o lugar, até mesmo no leal Scott.

Os outros homens poderosos da região –fidalgos traiçoeiros e elitistas, nada satisfeitos em verem-se acoados pelas vontades intransigentes de um pistoleiro verdadeiramente perigoso –haverão de valer-se disso para levar Talby e se confrontar com o único homem capaz de realmente vencê-lo: Aquele que ele mesmo ensinou.

Se no trabalho de Hawks –vindo da Velha Hollywood –os protagonistas conseguem, ao fim, superar suas diferenças para abraçar o valor da conciliação num simbólico final feliz, aqui, em “Dias de Ira”, os realizadores do faroeste spaghetti de então não estão nem um pouco interessados em amenizar as tensões: Refletindo os ebulientes tempos de confronto daqueles anos 1960, o filme transforma o inevitável duelo entre seus personagens principais no clímax ao qual o expectador logo compreende que a narrativa o levará.

Mais que a imagem do altivo e respeitável homem do oeste de John Wayne, o Talby de Lee Van Cleef –ainda que, à rigor, mantenha-se esse mesmo personagem –representa a truculência das terras sem lei americanas sobrepujada pelos ideais modernos (e pelos esquemas de ordem conspiratória) do capitalismo, numa reflexão incisiva para com a América que o cinema hollywoodiano dificilmente haveria de perpetrar de maneira tão contundente e brilhante quanto o fazem, aqui, os italianos.

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