sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Bela Vingança


 “Promising Young Woman” foi o grande vencedor do Oscar 2021 de Melhor Roteiro Original conferido à Emerald Fennell, também ela a diretora do longa. Produzido pela estrela Margot Robbie, “Promising Young Woman” é uma engenhosa trama sobre vingança que, ao seu jeito, alberga certas predisposições em voga nos tempos atuais e que sempre merecem um debate para o discernimento do que é certo e errado: A relativização do estupro; o empoderamento feminino; a masculinidade tóxica; a misoginia institucionalizada e latente.

Numa atuação tão intuitiva quanto primorosa, Carey Mulligan é Cassie Thomas, ex-estudante de medicina que, num determinado ponto da vida, largou o futuro auspicioso que tinha para trabalhar como garçonete num café. Sua rotina consiste de uma inicialmente estranha obsessão: Durante a noite, Cassie finge estar bêbada em bares e boates da cidade, até inevitavelmente chamar a atenção de algum aproveitador. Na hora H, ela sempre termina revelando seu fingimento e intimidando seus covardes algozes.

Não chega a ser uma retalhação violenta a um ato molestador, mas, a direção sugestiva, elíptica e inteligente de Fennell, somada à atuação intensa e contundente de Mulligan fazem parecer, no início, que é: Cassie é elevada, na narrativa que a acompanha, a uma espécie de justiceira.

Notável é perceber a eficiência com que o filme estabelece essas características, sem maiores elementos e até mesmo sem mais informações que elucidem um certo mistério que cerca a protagonista –o do porque ela se comporta de tal forma.

Escrito com brilhantismo singular, o roteiro sabe o momento certo para omitir e para fornecer informações ao público, na medida em que isso ajuda a revitalizar o suspense.

A manutenção desse hábito parece roubar a capacidade de interação social de Cassie –como bem percebem seus preocupados pais, vividos por Jennifer Coolidge (de “Napoleão Dynamite”) e Clancy Brown (de “Highlander” e “Um Sonho de Liberdade”), talvez, os únicos personagens razoáveis em sua profundidade de todo o filme. Tudo parece ter relação com um incidente do passado de Cassie, durante a faculdade, e que tem relação com sua melhor amiga, Nina –uma personagem nunca vista, mais essencial ao plot.

Quando Cassie se encontra com o jovem pediatra Ryan (Bo Burnham),  ela começa a trilhar dois caminhos bastante distintos, e que aparentemente a obrigarão, em algum momento, à uma escolha: De um lado, aceitar o relacionamento saudável e carinhoso que desenvolve com ele; e do outro, o estreitamento incontornável do momento em que sua tão alardeada vingança se sucederá contra o responsável por tudo o que aconteceu, o almofadinha Al Monroe (Chris Lowell, de “Histórias Cruzadas”).

Até mesmo nisso, porém,  o roteiro de Fennell subverte as certezas do público –na crença de que, ao estabelecer duas linhas de ação antagônicas, ela fará da opção entre uma ou outra a materialização da redenção da protagonista. Ledo engano, “Promising Young Woman” faz esses dois tópicos se complementarem com ainda novas e surpreendentes adições nas nebulosas informações que vinha fornecendo ao expectador.

Construído com economia de recursos factuais, mas, sem a menor economia de inteligência, o filme de Fennell cria sequências absolutamente geniais na forma intrincada, mas sempre inteligível, com que os estratagemas de Cassie transcorrem ao longo da trama. Exemplo disso –e possivelmente, a espinha dorsal de toda a história –são os quatro alvos da vingança que, à exemplo de “Kill Bill”, de Tarantino (quem sabe, uma referência) se sucedem de forma episódica: O primeiro, uma colega dos tempos de escola (Alisson Brie) destinada a pagar muito caro por sua conivência; o segundo, uma reitora (Connie Britton) cuja falta de empatia, Cassie vai tratar de (num plano brilhante) voltar contra ela própria; o terceiro, trata-se de um advogado (ponta soberba de Alfred Molina) corroído pela culpa: e o quarto... bem, o quarto alvo de Cassie, e os desdobramentos de sua vingança, representam uma das mais formidáveis guinadas do filme, quiçá de todo o ano de 2020!

É pena que, em sua excelência, “Promising Young Woman” não permite uma elucidação mais específica de suas qualidades: A construção e a execução de todas as facetas de sua premissa estão diretamente relacionadas às surpresas que efetivamente não devem ser reveladas para que a apreciação desta obra fenomenal não se comprometa.

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