Em princípio, parece que “Cruella” segue a fórmula estabelecida por “Malévola”, na qual narrativas clássicas da Disney (como “A Bela Adormecida”, no caso) ganham nova roupagem, sobretudo, no que diz respeito à revisão do papel de suas antagonistas, de vilãs unilaterais para criaturas mais ambíguas, humanas e incompreendidas.
E isso está definitivamente nos planos do
diretor Craig Gillespie –cujo filme também se irmana aos live-actions da Disney refilmando suas clássicas animações como
ocorreu com “Mulan” –embora Gillespie saiba acrescentar originalidade, audácia
e brilhantismo o bastante para dar a este projeto autêntica razão de ser.
Pois, “Cruella” –cuja animação-fonte trata-se
do encantador porém imperfeito “101 Dálmatas” (uma obra da Disney realizada quando
o estúdio já empregava atitudes mais econômicas em contraste com os arroubos
técnicos do passado) –parte daí para tentar humanizar e até justificar os atos
e comportamentos de uma das mais maldosas vilãs de sua galeria: A terrivelmente
intratável Cruella de Vil (Malvina Cruella na versão brasileira clássica do
desenho).
É um tendência curiosa da parte de Disney, essa
de aprofundar as motivações do mal a ponto de tornar seus vilões personagens
relacionáveis de tal forma que a própria pecha de ‘vilões’ deixa de fazer algum
sentido –e com isso, “Cruella” ganha também similaridades (como bem a crítica
reparou) com o recente e elogiado “Coringa”, de Todd Phillips, onde um vilão de
quadrinhos se torna pretexto para todo um ensaio sobre injustiça e opressão,
além de palco para um estilo tão charmoso quanto anacrônico; “Cruella” se
beneficia da brilhante reconstituição do movimento punk-rock da Londres dos anos 1970, na observação de seus figurinos
(algo central à sua premissa), na própria atitude inconformista da personagem
principal e, certamente, na trilha sonora (onde comparecem hinos inevitáveis
como os fabulosos “Should I Stay Or Should I Go”, do The Clash, ou “Sympathy
For The Devil”, dos Rolling Stones). Se “Malévola” remanejava características
da trama principal a fim de beneficiar a
índole daquela que antes era a vilã da trama, em “Cruella”, o talento de
Gillespie fala alto ao moldar sua protagonista sem desviar-se de seu
temperamento problemático, egoísta e vingativo, mas centralizando-a com habilidade
numa trama escrita com primazia, onde os elementos bem ordenados compõem, a um
só tempo, uma história de origem, e um prequel
eficiente e plenamente satisfatório dos eventos vistos na animação.
A garota Stella nasceu com uma peculiaridade
que a tornava basicamente um alvo dos bullies
durante sua fase escolar: Seu cabelo era naturalmente dividido entre
completamente branco de um lado e completamente negro de outro. Sua mãe (Emily
Beecham) até tenta conter o ímpeto combativo de Stella durante seu crescimento,
até que, ao ser expulsa da escola, Stella e a mãe seguem rumo ao que parece ser
um parente distante. Nos eventos que se seguem, Stella acaba vendo sua mãe
morrer (!) pelo que ela passa o resto da vida acreditando ter sido um erro seu.
Já crescida (e interpretada com fulgor
intuitivo e carisma inconteste por Emma Stone) e acompanhada de dois vigaristas
de rua que se converteram em sua família, Jasper (Joel Fry) e Horacio (Paul
Walter Hauser, ator presente no fantástico “Eu, Tonya”, também dirigido por
Gillespie), Stella vê a chance de deixar a vida de roubos para trás e realizar
seu antigo sonho de ascender como um gênio da moda: Ela consegue uma vaga de
emprego na House Of Baroness, ateliê comandado pela milionária, lendária e
tirânica Baronesa Von Hellman (Emma Thompson, esbaldando-se no papel).
Mas, como sempre, Stella não encontra terreno
fértil para suas boas intenções, e a mesquinhez e a perfídia de todos os
coadjuvantes que a cercam levam-na a deixar seu lado perverso e implacável
aflorar: Assim, Stella deixa de ser a jovem compassiva (e de cabelo tingido com
mais normalidade) para assumir a persona de Cruella que, além de ostentar
orgulhosa sua cabeleira bicromática, representa uma misteriosa e competitiva
rival para o papel de diva fashion até então esclusivo da Baronesa.
Esse elemento ao estilo “O Diabo Veste Prada”
(cuja roteirista, Alice Brosh-McKenna, não por acaso, é argumentista deste
filme ao lado de Kelly Marcel e Steve Zissis) determina o contexto de “Cruella”
e ambienta o formidável e divertido duelo do qual o filme se incumbe: Não
apenas as personagens são fulgurantes em suas índoles indomáveis como também as
duas fenomenais intérpretes (as duas Emmas!) privilegiam o expectador com um
embate sensacional de atuações moduladas na medida certa: sutil o suficiente
para não caírem no caricato, expressivas o bastante para não se tornarem
inapropriadas ao gênero que abordam.
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