segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Cruella


 Em princípio, parece que “Cruella” segue a fórmula estabelecida por “Malévola”, na qual narrativas clássicas da Disney (como “A Bela Adormecida”, no caso) ganham nova roupagem, sobretudo, no que diz respeito à revisão do papel de suas antagonistas, de vilãs unilaterais para criaturas mais ambíguas, humanas e incompreendidas.

E isso está definitivamente nos planos do diretor Craig Gillespie –cujo filme também se irmana aos live-actions da Disney refilmando suas clássicas animações como ocorreu com “Mulan” –embora Gillespie saiba acrescentar originalidade, audácia e brilhantismo o bastante para dar a este projeto autêntica razão de ser.

Pois, “Cruella” –cuja animação-fonte trata-se do encantador porém imperfeito “101 Dálmatas” (uma obra da Disney realizada quando o estúdio já empregava atitudes mais econômicas em contraste com os arroubos técnicos do passado) –parte daí para tentar humanizar e até justificar os atos e comportamentos de uma das mais maldosas vilãs de sua galeria: A terrivelmente intratável Cruella de Vil (Malvina Cruella na versão brasileira clássica do desenho).

É um tendência curiosa da parte de Disney, essa de aprofundar as motivações do mal a ponto de tornar seus vilões personagens relacionáveis de tal forma que a própria pecha de ‘vilões’ deixa de fazer algum sentido –e com isso, “Cruella” ganha também similaridades (como bem a crítica reparou) com o recente e elogiado “Coringa”, de Todd Phillips, onde um vilão de quadrinhos se torna pretexto para todo um ensaio sobre injustiça e opressão, além de palco para um estilo tão charmoso quanto anacrônico; “Cruella” se beneficia da brilhante reconstituição do movimento punk-rock da Londres dos anos 1970, na observação de seus figurinos (algo central à sua premissa), na própria atitude inconformista da personagem principal e, certamente, na trilha sonora (onde comparecem hinos inevitáveis como os fabulosos “Should I Stay Or Should I Go”, do The Clash, ou “Sympathy For The Devil”, dos Rolling Stones). Se “Malévola” remanejava características da trama principal a fim de  beneficiar a índole daquela que antes era a vilã da trama, em “Cruella”, o talento de Gillespie fala alto ao moldar sua protagonista sem desviar-se de seu temperamento problemático, egoísta e vingativo, mas centralizando-a com habilidade numa trama escrita com primazia, onde os elementos bem ordenados compõem, a um só tempo, uma história de origem, e um prequel eficiente e plenamente satisfatório dos eventos vistos na animação.

A garota Stella nasceu com uma peculiaridade que a tornava basicamente um alvo dos bullies durante sua fase escolar: Seu cabelo era naturalmente dividido entre completamente branco de um lado e completamente negro de outro. Sua mãe (Emily Beecham) até tenta conter o ímpeto combativo de Stella durante seu crescimento, até que, ao ser expulsa da escola, Stella e a mãe seguem rumo ao que parece ser um parente distante. Nos eventos que se seguem, Stella acaba vendo sua mãe morrer (!) pelo que ela passa o resto da vida acreditando ter sido um erro seu.

Já crescida (e interpretada com fulgor intuitivo e carisma inconteste por Emma Stone) e acompanhada de dois vigaristas de rua que se converteram em sua família, Jasper (Joel Fry) e Horacio (Paul Walter Hauser, ator presente no fantástico “Eu, Tonya”, também dirigido por Gillespie), Stella vê a chance de deixar a vida de roubos para trás e realizar seu antigo sonho de ascender como um gênio da moda: Ela consegue uma vaga de emprego na House Of Baroness, ateliê comandado pela milionária, lendária e tirânica Baronesa Von Hellman (Emma Thompson, esbaldando-se no papel).

Mas, como sempre, Stella não encontra terreno fértil para suas boas intenções, e a mesquinhez e a perfídia de todos os coadjuvantes que a cercam levam-na a deixar seu lado perverso e implacável aflorar: Assim, Stella deixa de ser a jovem compassiva (e de cabelo tingido com mais normalidade) para assumir a persona de Cruella que, além de ostentar orgulhosa sua cabeleira bicromática, representa uma misteriosa e competitiva rival para o papel de diva fashion até então esclusivo da Baronesa.

Esse elemento ao estilo “O Diabo Veste Prada” (cuja roteirista, Alice Brosh-McKenna, não por acaso, é argumentista deste filme ao lado de Kelly Marcel e Steve Zissis) determina o contexto de “Cruella” e ambienta o formidável e divertido duelo do qual o filme se incumbe: Não apenas as personagens são fulgurantes em suas índoles indomáveis como também as duas fenomenais intérpretes (as duas Emmas!) privilegiam o expectador com um embate sensacional de atuações moduladas na medida certa: sutil o suficiente para não caírem no caricato, expressivas o bastante para não se tornarem inapropriadas ao gênero que abordam.

O manuseio inspirado de suas ferramentas narrativas coloca “Cruella”, ao fim, no ponto ideal para o início da trama original vista em “101 Dálmatas”, entretanto, a dúvida vai ser como a continuação (já anunciada e com a presença de Emma Stone garantida) conseguirá se fazer relevante, afinal, o próprio “101 Dálmatas” já ganhou uma versão em live-action (muito antes da Disney transformar isso num hábito) nos anos 1990, onde Cruella era vivida por Glenn Close, até então uma atriz vista como perfeita para o papel. Contudo, depois deste trabalho efusivo e brilhante dificilmente alguém irá questionar a fabulosa adequação de Emma Stone à personagem.

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