sábado, 1 de outubro de 2022

Crônica de Uma Morte Anunciada


 Desde sempre um cineasta engajado com as observações morais do ser humano em coletividade –e de como comportamentos justificados pela tradição fomentam atitudes inclinadas a uma violência injustificável para os dias de hoje –o italiano Francesco Rossi (diretor do sublime “O Bandido Giuliano”), assim que cravou os olhos no romance homônimo de Gabriel Garcia Marquez enxergou ali uma contraparte perfeita, diferenciada, coerente e genuína de todas as inquietações às quais almejou dar voz em sua sólida filmografia.

Da iniciativa em transformar “Crônica de Uma Morte Anunciada” em filme –sempre um desafio para qualquer diretor de cinema tendo em vista o teor romanticamente abstrato e a linguagem essencialmente literária das obras de Garcia Marquez –surgiu esta produção cujo orçamento, financiado por variadas fontes européias distintas, terminou moldando uma realização cheia de curiosas complexidades linguísticas e étnicas: Falado parte em espanhol, parte em inglês (e posteriormente dublado em outros idiomas), com um elenco multinacional e uma equipe técnica igualmente diversificada, isso tudo, acarretando uma inesperada personalidade dúbia ao projeto.

Em uma cidadezinha colombiana do início do Século XX, um fidalgo chamado Santiago Nasar (Anthony Delon, filho do astro francês Alain Delon) tem seu assassinato pré-determinado pelos irmãos da belíssima Angela Vicario (a sempre estonteante Ornella Mutti). O motivo: Durante sua noite de núpcias, Angela se vê prontamente repudiada por seu noivo, o rico forasteiro Bayardo San Roman (Rupert Everett), devido à constatação de que ela não é mais virgem (!).

Com Angela desonrada e devolvida ao seio da família, resta aos seus dois irmãos gêmeos Pablo e Pedro (os também gêmeos Rogerio e Carlos Miranda) lavar sua honra com sangue, permitindo assim que a notícia do assassinato iminente transcorra por dias pela comunidade colombiana que, à sombra da prática arcaica e violenta do acerto de contas, tratam a tudo com indiferença.

O narrador do filme –personagem a quem o livro primordial de Garcia Marquez nega qualquer identidade, mas no filme de Rossi é colocado como sendo Cristo Bedoya (Gian Maria Volonté, da “Trilogia dos Dólares”, de Sergio Leone), melhor amigo do assassinado –relata o antes, o durante e o depois do acontecimento, indo e vindo no tempo, procurando criar uma rica impressão sobre os costumes e hábitos de flagrante peculiaridade na pequena comunidade.

Contudo, se há algo que o filme de Rossi faz com ênfase inconteste é deixar bem claro o quão árduo e infrutífero pode ser o processo de se adaptar Gabriel Garcia Marquez –ou outros literatos igualmente notáveis –para o cinema: Se no livro, as motivações dos personagens (ou a ausência de clareza nelas) funciona perfeitamente para construir uma tragédia que, em si, denuncia o absurdo da estupidez humana, no filme, a busca paulatina pela preservação sistemática dessa narrativa resulta engessada, e as escolhas visuais para evocar alguma fidelidade ao romance (a direção de fotografia, a cargo de Pasqualino De Santis, iluminador de “Morte Em Veneza”, explora o exotismo particular presente na luz natural das locações na Colômbia para produzir um antagonismo visual entre o verde gotejante da floresta amazônica e o branco de dissimulada civilidade da cidade) acabam convertendo todo o arco narrativo num modorrento melodrama.

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