Na loja em que Jonathan Switcher (Andrew McCarthy) trabalha, em um mal-explicado expediente noturno, as vitrines inspiradas que ele prepara surgem, por mágica, literalmente! –quem o auxilia é uma das manequins do depósito (!) que ganha vida toda vez que Jonathan se vê sozinho (!?). esse mote mágico e extremamente básico –cujo enredo não fornece maiores esclarecimentos –é o que norteia o curioso clássico da ‘sessão da tarde’ “Manequim”, de 1987, dirigido por Michael Gottlieb.
Há quem diga que “Mannequin” seja uma espécie
de refilmagem disfarçada do musical “Vênus-Deusa do Amor”, de 1948, estrelado
por Ava Gardner, contudo, se for verdade, muita coisa mudou entre o
planejamento e a execução. “Manequim” começa iludindo o público, e dando a
entender que fornecerá alguma lógica sobrenatural à premissa francamente
mirabolante que haverá de desenvolver. A primeira cena –anterior até mesmo aos
créditos em animação que logo se seguem –se situa no Egito Antigo, despido de qualquer
caracterização, reconstituição e pesquisa (!), trata-se de um cenário a lembar
um filme de Grouxo Marx, no qual a princesa Emmy (a loira Kim Cattrall, longe
de qualquer relação étnica com uma princesa egípcia) disfarça-se de múmia a fim
de escapar de mais uma briga com a mãe (!?), indignada que está com a pontual
rebeldia da filha, o desleixo do marido faraó e os aborrecimentos de ser uma
mulher moderna (!!) –nada na cena soa como uma recriação minimamente empenhada
de um cenário egípcio, mas sim como a comédia oitentista que ela de fato é. Na
sequência ao diálogo pleno de galhofa que se segue, Emmy desaparece sem a menor
explicação e o filme começa, saltando para a Nova York dos anos 1980, onde
somos de pronto apresentados ao titubeante, bobo e ligeiramente alienado
protagonista do filme, o desempregado metido à artista, Jonathan Switcher
vivido por Andrew McCarthy, ator recorrente em filmes cômicos daquele período,
aqui entregando uma de suas atuações mais estranhas e fora da realidade –fruto,
eu acredito, da pouca desenvoltura do diretor Gottlieb –ao mesmo tempo que uma
das mais conhecidas.
Swicther é, de fato, um personagem que em muito
simboliza algumas características dos anos 1980, para o bem e para o mal –é
jovem, demasiadamente ingênuo, a ponto de não enxergar a realidade como ela é, o
que o leva a saltar de um emprego a outro sem conseguir adequar-se a nenhum
deles; na maior parte dos casos, Switcher é despedido por não se encaixar, em
sua avoada atmosfera artística, às exigências das funções. No primeiro dos
vários empregos que perde –cuja inconstância faz extinguir a paciência de sua
namorada Roxie (Carole Davis, de “Ao Vivo de Bagdá”) –ele dedica tamanho tempo
à confeccionar um manequim feito de isopor e madeira, que seu empregador o
manda embora por sua lentidão. Dias depois, porém, ele encontra o mesmo
manequim –por quem, veja só (!), ele parece nutrir desde já uma inusitada
afeição... –enfeitando a vitrine de uma loja de departamentos. Ele consegue ser
empregado nessa loja pela proprietária em pessoa, Madame Claire Prince Timkin (Estelle
Getty, do seriado enlatado “As Supergatas” e do filme catastrófico de Stallone
“Pare! Senão Mamãe Atira”) numa cena que é o mais puro nonsense –ele salva a vida dela ao evitar que seja atingida pela
placa de comemoração ao centenário da loja, ficando dependurado na mesma
enquanto um cabo elétrico lhe dá choques no traseiro (!?) –e, aos cuidados do
pra lá de estranho Hollywood (Meshach Taylor, na mais afetada das muitas atuações afetadas que o filme traz), é incumbido da elaboração das vitrines
da loja no turno da noite.
Mas, espere! E quanto à princesa Emmy no começo
do filme? Deveras, ela demora muito a
reaparecer o que acaba deixando o filme de Gottlieb com uma desagradável
sensação involuntária de estranhamento, e quando o faz, ela aparece para
Switcher materializada como a sua tão adorada manequim que ganha vida (!), e
que aparece tão somente para ele (!?) –e, se você acha que há uma explicação
para isso como um passe de mágica, uma maldição egípcia, ou qualquer outra
coisa, fique sabendo que... não! Não há
qualquer explicação do porque ou como a mesma princesa que vimos no
prólogo surge transmutada num manequim que, sem razão alguma, ganha vida (e nem
vou entrar nos méritos da questão linguística visto que ela era egípcia e
aparece em Nova York falando inglês...). Para muitos, uma teoria que confere um
mínimo de lógica à este filme –que, obviamente, não se importa em ter lógica
alguma –é o fato de que, no aspecto quase catatônico que ostenta do início ao
fim (e que vai realmente despertando a suspeita de inúmeros coadjuvantes), o
protagonista Switcher talvez realmente seja uma cara meio louco, e o fato de
ver, conversar e apaixonar-se pela manequim comprove isso, ainda que o filme
assuma seu ponto de vista fazendo parecer que toda essa fantasia romântica seja
real, ao menos para ele.
É assim que, todas as noites, enquanto brinca
descompromissado com o recém-descoberto amor de sua vida –a manequim Emmy, nas
formas bastante cativantes ainda que ligeiramente inadequadas de Kim Cattrall
–Switcher recebe a ajuda dela para elaborar vitrines cada vez mais inspiradas
que vão transformando-o numa verdadeira estrela dentro da loja, e ao mesmo
tempo, acabam despertando a desconfiança e o antagonismo do almofadinha
Richards (o versátil James Spader) e do desmiolado vigia noturno Maxwell (G. W.
Bayley, o capitão de “Loucademia de Polícia”). E o filme “Manequim” segue
assim, irregular em sua comédia (basicamente, nenhuma de suas piadinhas possuem
graça, nem tampouco os trejeitos exagerados de todo o elenco de modo geral),
incerto em sua proposta (afinal, o roteiro não esclarece as razões pelas quais
tudo se passa, e consequentemente, não oferece uma compreensão de onde tudo
isso irá levar), funcionando, quando muito, como romance graças à química
relativamente boa entre McCarthy e Kim, atores jovens e carismáticos, colocados
em personagens, infelizmente, destituídos de alguma profundidade.
Por essas e por outras razões, até hoje fãs
inadvertidos do filme procurando um significado implícito no desfecho –quando a
manequim é ‘roubada’ da loja a fim de que seus concorrentes possam barganhar a
contratação do agora notório artista Switcher (anos 1980, sabe como é, segue o
baile...), e seu corpo inanimado cai numa esteira prestes a jogá-la dentro de
um triturador, eis que Switcher parece conseguir, no último instante, salvá-la,
fazendo com que a força de seu amor (ou algo assim,presume-se) transforme-a
definitivamente em mulher de carne e osso, mesmo que agora diante dos olhares
alheios (até então, toda a vez que alguém olhava para ela, exceto Switcher, ela
convertia-se em manequim), propiciando o inevitável final feliz aos pombinhos.
(Por sinal, a cena final, do casamento realizado dentro da vitrine da loja,
traz o que talvez seja o melhor e mais acertado elemento do filme, a canção
“Nothing’s Gonna Stop Us Now”, do Starship, que chegou a ser indicada ao
Oscar 1988!)
Acontece que, segundo a interpretação (até
mesmo mórbida) por parte de alguns, nesta cena, tanto Switcher como sua adorada
manequim Emmy de fato caíram no triturador vindo ambos à morrer –todavia, como
‘ver’ a realidade nunca foi o forte do protagonista, ele não se deu conta de
que morreu, imaginando no além-vida, um final feliz junto de sua amada, agora
contemplada pelos outros personagens à sua volta, sendo que na verdade, ela
nunca deixou de ser uma manequim de fato.
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