Quando a Disney lançou sua plataforma de streaming, o Disney Plus, era inevitável que seus produtos exclusivos aproveitassem, e muito, o material vasto de que a empresa dispunha, sendo que o mais rentável deles é, sem sombra de dúvidas, as obras oriundas da Marvel Studios. Por meio disso, os fãs viram o que antes era uma sequência de filmes prolongada por pouco mais de dez anos –o assim chamado MCU –ser expandido para a mídia televisiva em formato de séries e minisséries. Personagens adaptadas dos quadrinhos, habitantes do mesmo universo compartilhado onde vimos o Homem-de-Ferro e o Capitão América, agora surgiam também em séries para a TV, na medida do possível, produzidas com o mesmo esmero e qualidade almejados no cinema, mas com a duração estendida de série, o que possibilitava aprofundamento de personagens e, em geral, a chance de adaptar com ainda mais fidelidade arcos inteiros dos quadrinhos. Muito aguardada, a série da “Mulher-Hulk” foi um desses casos, entretanto, pode-se dizer que ela padeceu por diversas circunstâncias inesperadas.
Acometida de um acidente automobilístico, a
advogada Jennifer Walters (a ótima Tatiana Maslany) tem seu sangue
acidentalmente misturado com o de seu primo que, à propósito é Bruce Banner (Mark
Ruffalo), o Hulk em pessoa. Ao converter-se numa versão turbinada, forte e
esverdeada de si mesma, Jennifer recebe de Bruce a explicação que o DNA da
família deles cria, de alguma forma, uma compatibilidade com a mutação
provocada pela radiação gama, o que transforma ambos em ‘Hulks’. Contudo, se
Bruce levou anos para dominar a fúria de seu alter-ego, Jennifer não tem esse
problema: Sua personalidade permanece sempre a mesma a despeito da capacidade
de oscilar entre dois corpos tão diferentes.
É claro que, ao tentar retomar a vida como
advogada, essa nova condição não passa despercebida e Jennifer se torna uma
espécie de celebridade conhecida como Mulher-Hulk (ou “She-Hulk”, no original)
passando a usar de seus conhecimentos em advocacia para ajudar pessoas
envolvidas com problemas diretamente relacionados aos superheróis.
O que se sucede com “Mulher-Hulk”, a série, a
partir daí é uma infestação de personagens classe C e D da Marvel nos
quadrinhos, como a vilã Titania (Jameela Jamil) que tenta passar um golpe na
heroína ao processá-la pelo uso indevido da própria marca “She-Hulk” registrada
por ela, e algumas participações um pouco mais ilustres, como Emil Blonski, o
Abominável (Tim Roth) cuja participação em “Shang-Chi A Lenda dos Dez Anéis”,
lutando contra Wong (Benedict Wong, que também aparece!) é esclarecida aqui
quando requisita os serviços da Mulher-Hulk para ser liberado pela condicional
(!).
Outros tópicos da série (cujos desdobramentos
se estendem por nove episódios) incluem uma tentativa virtual e tóxica de
sabotar a vida de Jennifer (um reflexo de comportamentos nocivos e muito reais
dos tempos atuais) e sua já tumultuada vida amorosa que ganha um viés de
dubiedade a partir do momento em que Jennifer tem a oportunidade de escolher
entre duas personas distintas –a Jennifer Walters comum e sem maiores atrativos
que, por uma questão de princípios ou de auto-afirmação, ela insiste em manter
no controle de sua vida, ou a poderosa, exótica e atraente Mulher-Hulk capaz de
personificar o tipo impraticável de mulherão que até então ela era incapaz de
ser, mas que traz a reboque atribulações com as quais ela não tem certeza se
consegue lidar.
O time de hábeis roteiristas e diretoras (entre
elas, Kat Coiro, Jessica Gao, a criadora do programa, Francesca Gailes,
Jacqueline J. Gailes, Melissa Hunter, Dana Schwartz, Kara Brown, e outras)
reunidas para esta série compreende as variações dessa dicotomia, e as expõe
com humor afiado e ritmo audaz, fazendo da série um deleite para ser apreciado.
Os últimos episódios ainda brindam o público com a participação sensacional e
pra lá de especial de Matt Murdock (Charlie Cox, fantástico), o Demolidor,
também ele, um herói da Marvel que age como advogado em sua vida civil. A
sintonia entre Tatiana e Charlie, por sinal, possui a mais perfeita química de
toda a Fase 4 da Marvel.
Nos quadrinhos –e a versão em série de TV é
admiravelmente fiel à eles, diga-se –a Mulher-Hulk também vem a ser prima de
Bruce Banner ganhando poderes iguais aos do seu primo e virando algo que, em
diversos momentos na existência da personagem, ameaçou fazer dela uma mera
‘versão feminina’; rótulo do qual sua equipe criativa (composta por várias
mulheres talentosas) tenta e consegue se desvencilhar. Também pudera: Nos
quadrinhos mesmo, a Mulher-Hulk, ou melhor, Jennifer Walters, ganhou
originalidade e personalidade própria graças aos esforços do escritor e
roteirista John Byrne que fez dela um título notável empregando humor e, para
sua época, uma inovadora quebra da quarta parede: A personagem, em suas histórias
SABIA estar dentro de uma história em quadrinhos, e isso rendia histórias
divertidas, espirituosas e diferenciadas. Esta série da Mulher-Hulk segue uma
linha bastante parecida –seria mesmo um desperdício não adotar um estilo tão
interessante –mas, é curioso que isso tenha desagrado muitos ‘fãs’: Ao colocar
um mulher empoderada e supina como protagonista de uma série com propostas
relativamente inéditas, os produtores provocaram a ira de expectadores
incapazes de enxergar personagens femininas com a mesma iniciativa arrojada que
se vê em personagens masculinos.
Dois exemplos muito difundidos pela internet
são patentes: No primeiro, um meme resultado de uma das cenas pós-créditos em
um dos episódios (a série tem várias), onde a Mulher-Hulk faz uma dancinha ao
lado da cantora Megan The Stallion, irritou alguns expectadores. Robert Downey
Jr. pode dançar à vontade no papel de Tony Stark, isso só enfatiza o quanto ele
é charmoso, seguro de si e cool, já
uma mulher... bem, na opinião de muitos internautas, uma mulher não pode (!).
No segundo exemplo, a já mencionada postura da personagem de quebrar a quarta
parede, e dirigir-se para a câmera conversando com o público –e, no processo,
estabelecer, uma interessante metalinguagem ao assumir que a protagonista compreende
estar numa série de TV –também desagradou parte do público; outro personagem da
Marvel, o “Deadpool”, já fizera algo assim em seus dois filmes para cinema, e
tal manobra (não destituída de mérito) foi aplaudida e festejada, mas, no caso
da Mulher-Hulk fazer isso, para alguns, soou forçado.
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