terça-feira, 23 de maio de 2023

Mulher-Hulk - Defensora de Heróis


 Quando a Disney lançou sua plataforma de streaming, o Disney Plus, era inevitável que seus produtos exclusivos aproveitassem, e muito, o material vasto de que a empresa dispunha, sendo que o mais rentável deles é, sem sombra de dúvidas, as obras oriundas da Marvel Studios. Por meio disso, os fãs viram o que antes era uma sequência de filmes prolongada por pouco mais de dez anos –o assim chamado MCU –ser expandido para a mídia televisiva em formato de séries e minisséries. Personagens adaptadas dos quadrinhos, habitantes do mesmo universo compartilhado onde vimos o Homem-de-Ferro e o Capitão América, agora surgiam também em séries para a TV, na medida do possível, produzidas com o mesmo esmero e qualidade almejados no cinema, mas com a duração estendida de série, o que possibilitava aprofundamento de personagens e, em geral, a chance de adaptar com ainda mais fidelidade arcos inteiros dos quadrinhos. Muito aguardada, a série da “Mulher-Hulk” foi um desses casos, entretanto, pode-se dizer que ela padeceu por diversas circunstâncias inesperadas.

Acometida de um acidente automobilístico, a advogada Jennifer Walters (a ótima Tatiana Maslany) tem seu sangue acidentalmente misturado com o de seu primo que, à propósito é Bruce Banner (Mark Ruffalo), o Hulk em pessoa. Ao converter-se numa versão turbinada, forte e esverdeada de si mesma, Jennifer recebe de Bruce a explicação que o DNA da família deles cria, de alguma forma, uma compatibilidade com a mutação provocada pela radiação gama, o que transforma ambos em ‘Hulks’. Contudo, se Bruce levou anos para dominar a fúria de seu alter-ego, Jennifer não tem esse problema: Sua personalidade permanece sempre a mesma a despeito da capacidade de oscilar entre dois corpos tão diferentes.

É claro que, ao tentar retomar a vida como advogada, essa nova condição não passa despercebida e Jennifer se torna uma espécie de celebridade conhecida como Mulher-Hulk (ou “She-Hulk”, no original) passando a usar de seus conhecimentos em advocacia para ajudar pessoas envolvidas com problemas diretamente relacionados aos superheróis.

O que se sucede com “Mulher-Hulk”, a série, a partir daí é uma infestação de personagens classe C e D da Marvel nos quadrinhos, como a vilã Titania (Jameela Jamil) que tenta passar um golpe na heroína ao processá-la pelo uso indevido da própria marca “She-Hulk” registrada por ela, e algumas participações um pouco mais ilustres, como Emil Blonski, o Abominável (Tim Roth) cuja participação em “Shang-Chi A Lenda dos Dez Anéis”, lutando contra Wong (Benedict Wong, que também aparece!) é esclarecida aqui quando requisita os serviços da Mulher-Hulk para ser liberado pela condicional (!).

Outros tópicos da série (cujos desdobramentos se estendem por nove episódios) incluem uma tentativa virtual e tóxica de sabotar a vida de Jennifer (um reflexo de comportamentos nocivos e muito reais dos tempos atuais) e sua já tumultuada vida amorosa que ganha um viés de dubiedade a partir do momento em que Jennifer tem a oportunidade de escolher entre duas personas distintas –a Jennifer Walters comum e sem maiores atrativos que, por uma questão de princípios ou de auto-afirmação, ela insiste em manter no controle de sua vida, ou a poderosa, exótica e atraente Mulher-Hulk capaz de personificar o tipo impraticável de mulherão que até então ela era incapaz de ser, mas que traz a reboque atribulações com as quais ela não tem certeza se consegue lidar.

O time de hábeis roteiristas e diretoras (entre elas, Kat Coiro, Jessica Gao, a criadora do programa, Francesca Gailes, Jacqueline J. Gailes, Melissa Hunter, Dana Schwartz, Kara Brown, e outras) reunidas para esta série compreende as variações dessa dicotomia, e as expõe com humor afiado e ritmo audaz, fazendo da série um deleite para ser apreciado. Os últimos episódios ainda brindam o público com a participação sensacional e pra lá de especial de Matt Murdock (Charlie Cox, fantástico), o Demolidor, também ele, um herói da Marvel que age como advogado em sua vida civil. A sintonia entre Tatiana e Charlie, por sinal, possui a mais perfeita química de toda a Fase 4 da Marvel.

Nos quadrinhos –e a versão em série de TV é admiravelmente fiel à eles, diga-se –a Mulher-Hulk também vem a ser prima de Bruce Banner ganhando poderes iguais aos do seu primo e virando algo que, em diversos momentos na existência da personagem, ameaçou fazer dela uma mera ‘versão feminina’; rótulo do qual sua equipe criativa (composta por várias mulheres talentosas) tenta e consegue se desvencilhar. Também pudera: Nos quadrinhos mesmo, a Mulher-Hulk, ou melhor, Jennifer Walters, ganhou originalidade e personalidade própria graças aos esforços do escritor e roteirista John Byrne que fez dela um título notável empregando humor e, para sua época, uma inovadora quebra da quarta parede: A personagem, em suas histórias SABIA estar dentro de uma história em quadrinhos, e isso rendia histórias divertidas, espirituosas e diferenciadas. Esta série da Mulher-Hulk segue uma linha bastante parecida –seria mesmo um desperdício não adotar um estilo tão interessante –mas, é curioso que isso tenha desagrado muitos ‘fãs’: Ao colocar um mulher empoderada e supina como protagonista de uma série com propostas relativamente inéditas, os produtores provocaram a ira de expectadores incapazes de enxergar personagens femininas com a mesma iniciativa arrojada que se vê em personagens masculinos.

Dois exemplos muito difundidos pela internet são patentes: No primeiro, um meme resultado de uma das cenas pós-créditos em um dos episódios (a série tem várias), onde a Mulher-Hulk faz uma dancinha ao lado da cantora Megan The Stallion, irritou alguns expectadores. Robert Downey Jr. pode dançar à vontade no papel de Tony Stark, isso só enfatiza o quanto ele é charmoso, seguro de si e cool, já uma mulher... bem, na opinião de muitos internautas, uma mulher não pode (!). No segundo exemplo, a já mencionada postura da personagem de quebrar a quarta parede, e dirigir-se para a câmera conversando com o público –e, no processo, estabelecer, uma interessante metalinguagem ao assumir que a protagonista compreende estar numa série de TV –também desagradou parte do público; outro personagem da Marvel, o “Deadpool”, já fizera algo assim em seus dois filmes para cinema, e tal manobra (não destituída de mérito) foi aplaudida e festejada, mas, no caso da Mulher-Hulk fazer isso, para alguns, soou forçado.

Em resumo, “Mulher-Hulk” conquistou o desagrado de parte da audiência, não por seus supostos defeitos, mas, por muitas de suas virtudes, denunciando assim um certo machismo institucionalizado infelizmente ainda vigente no subconsciente de alguns expectadores. Para aqueles que não selecionarem seu entretenimento a partir de considerações tão mesquinhas, esta divertida série da Marvel Studios será um satisfatório, vívido e pulsante passatempo, plenamente capaz de entreter e cativar com seu humor descompromissado e com sua interessante protagonista.

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