terça-feira, 30 de maio de 2023

O Homem do Norte


 O mais ambicioso trabalho até então do autoral diretor Roger Eggers, “O Homem do Norte” parte de uma antiga lenda viking que teria inspirado o próprio “Hamlet”, de William Shakespeare. O registro de Eggers para uma saga que, em si, vem carregada de tópicos bastante reconhecíveis –principalmente, porque o “Hamlet” de Shakespeare é uma obra maiúscula a inspirar um extenso leque de trabalhos na cultura pop –não poderia ser mais arrojado: Ele toma emprestado o senso visual singular de “O Regresso”, de Alejandro Gonzales Iñarritu, no qual cada fotograma é uma pintura e enche de beleza e opressão o mundo sombrio habitado pelo protagonista.

Amleth é filho de um pai assassinado (Ethan Hawke) e de uma mãe tomada à força (Nicole Kidman). Logo, o alvo central do ódio que alimenta até a fase adulta (onde é vivido por um musculoso Alexander Skaasgard, também produtor) vem a ser o autor dessas atrocidades: Seu próprio tio Fjölnir (Claes Bang, de “A Garota Na Teia de Aranha”).

Não à toa, o mantra que norteia Amleth ao longo de toda a vida é: Eu vou vingá-lo, pai. Eu vou salvá-la, mãe. Eu vou matá-lo, Fjölnir.

Os anos se passam após a fuga, por um triz, de Amleth de seu reino deposto, logo após o assassinato de seu pai. E Amleth, agora convertido num enorme e violento guerreiro regressa às terras de sua família no dissimulado papel de escravo. Comprado por um Fjölnir, agora resignado ao título de senhor de terras, Amleth aguarda, nas noites que se seguem, pelo momento de sua vingança, enquanto a propriedade de Fjölnir se vê assolada por inesperadas desgraças, fruto da intervenção de uma feiticeira (Anya Taylor-Joy, maravilhosa) que se apaixona por Amleth e resolve ajudá-lo em sua obsessão.

Os cânones mais distinguíveis da obra shakesperiana reaparecem neste filme de Eggers numa transfiguração poética e cinematográfica, em especial, a reflexão diante de um crânio, empregada aqui para evocar a presença anterior de Willem Dafoe (reeditando a colaboração com Eggers, depois de “O Farol”), todavia, o que realmente remete à Shakespeare é a percepção de tragédia, a impregnar de uma ironia cruel, cada nuance na trajetória de Amleth. Na ânsia unilateral para vingar a memória do pai –busca que lhe cobrou praticamente a vida inteira –Amleth é confrontado com as inverdades que infectaram cada uma de suas certezas: Se ele almejava salvar a mãe (Nicole Kidman e Alexander Skaasgard formaram um casal na minissérie “Big Little Lies”, o que confere à escalação deles, como mãe e filho, uma aura significativa, perturbadora e freudiana de incesto), ao revê-la ele descobre que o casamento com Fjölnir representou à ela, uma fuga de um casamento ainda mais infeliz; se ele desejava matar Fjölnir, o gradual convívio com seu eterno nêmesis vai revelando que ele é, apesar de tudo, um marido zeloso, um pai amoroso e um homem justo, o que confere à Amleth, e sua necessidade implacável de matá-lo, tintas de vilania e maldade.

Ambientado num mundo cujas facetas naturais e impiedosas brutalizam qualquer criatura a nele viver, “O Homem do Norte” é uma reconstituição desigual e originalíssima de um período antigo, fruto da percepção singular do diretor Eggers, e de sua capacidade em atentar-se à detalhes inesperados na composição (algumas cenas são construídas em torno da relação dos personagens com a música), no primor da direção de fotografia (concentrada em pormenores preciosos) e na evocação sofisticadamente artística de entraves violentos e indivíduos tão inusitados quando o mundo a que pertencem, todos registrados em técnicas de campo e contracampo que promovem uma imersão fora do comum. Grande trabalho.

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