O mais ambicioso trabalho até então do autoral diretor Roger Eggers, “O Homem do Norte” parte de uma antiga lenda viking que teria inspirado o próprio “Hamlet”, de William Shakespeare. O registro de Eggers para uma saga que, em si, vem carregada de tópicos bastante reconhecíveis –principalmente, porque o “Hamlet” de Shakespeare é uma obra maiúscula a inspirar um extenso leque de trabalhos na cultura pop –não poderia ser mais arrojado: Ele toma emprestado o senso visual singular de “O Regresso”, de Alejandro Gonzales Iñarritu, no qual cada fotograma é uma pintura e enche de beleza e opressão o mundo sombrio habitado pelo protagonista.
Amleth é filho de um pai assassinado (Ethan
Hawke) e de uma mãe tomada à força (Nicole Kidman). Logo, o alvo central do
ódio que alimenta até a fase adulta (onde é vivido por um musculoso Alexander
Skaasgard, também produtor) vem a ser o autor dessas atrocidades: Seu próprio
tio Fjölnir (Claes Bang, de “A Garota Na Teia de Aranha”).
Não à toa, o mantra que norteia Amleth ao longo
de toda a vida é: Eu vou vingá-lo, pai.
Eu vou salvá-la, mãe. Eu vou matá-lo, Fjölnir.
Os anos se passam após a fuga, por um triz, de
Amleth de seu reino deposto, logo após o assassinato de seu pai. E Amleth,
agora convertido num enorme e violento guerreiro regressa às terras de sua
família no dissimulado papel de escravo. Comprado por um Fjölnir, agora
resignado ao título de senhor de terras, Amleth aguarda, nas noites que se
seguem, pelo momento de sua vingança, enquanto a propriedade de Fjölnir se vê
assolada por inesperadas desgraças, fruto da intervenção de uma feiticeira
(Anya Taylor-Joy, maravilhosa) que se apaixona por Amleth e resolve ajudá-lo em
sua obsessão.
Os cânones mais distinguíveis da obra
shakesperiana reaparecem neste filme de Eggers numa transfiguração poética e
cinematográfica, em especial, a reflexão diante de um crânio, empregada aqui
para evocar a presença anterior de Willem Dafoe (reeditando a colaboração com
Eggers, depois de “O Farol”), todavia, o que realmente remete à Shakespeare é a
percepção de tragédia, a impregnar de uma ironia cruel, cada nuance na
trajetória de Amleth. Na ânsia unilateral para vingar a memória do pai –busca
que lhe cobrou praticamente a vida inteira –Amleth é confrontado com as
inverdades que infectaram cada uma de suas certezas: Se ele almejava salvar a
mãe (Nicole Kidman e Alexander Skaasgard formaram um casal na minissérie “Big
Little Lies”, o que confere à escalação deles, como mãe e filho, uma aura
significativa, perturbadora e freudiana de incesto), ao revê-la ele descobre
que o casamento com Fjölnir representou à ela, uma fuga de um casamento ainda
mais infeliz; se ele desejava matar Fjölnir, o gradual convívio com seu eterno
nêmesis vai revelando que ele é, apesar de tudo, um marido zeloso, um pai
amoroso e um homem justo, o que confere à Amleth, e sua necessidade implacável de
matá-lo, tintas de vilania e maldade.
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