quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

As Feras


 Penúltimo trabalho de Walter Hugo Khouri e a vigésima quarta obra cinematográfica por ele realizada, este “As Feras” atravessou uma gestação longa e conturbada, além de já carregar consigo diversas características que definiram o cinema da retomada e dos quais nem mesmo um artesão com a experiência e o gabarito de Khouri foi capaz de se desvencilhar: A fotografia e a edição (primeira experiência com montagem eletrônica feita por Khouri no cinema) trazem maneirismos dos profissionais da publicidade de então o que acarreta ao feito uma iluminação e uma aparência lívida de propaganda televisiva –e não havia realmente como fugir do fato de que os profissionais de audiovisual disponíveis para esses trabalhos vinham dessas áreas onde, afinal, ganhavam a vida.

No mais, contudo, “As Feras” resgata o mesmo cinema que, como autor, Khoury insistiu, durante toda vida e carreira, em desempenhar: Uma avaliação psicológica e pseudo-intelectual regada à sexo (onde se sobressaem magnificamente os corpos nus do elenco feminino) na qual está em foco as questões existenciais dos relacionamentos e da vida moderna.

Em sua estréia no cinema (e, por isso mesmo, apresentando uma atuação dramática que deixa a desejar), a então modelo Claudia Liz interpreta Ana, uma estudante de psicologia que apaixona-se por seu professor, Paulo (Nuno Leal Maia), vinte anos mais velho. Tal fato não permite que Ana perceba a paixão que ela própria despertou, por sua vez, na diretora de teatro Monica (Branca Camargo), apesar desta namorar a atriz Laura (Beth Prado). Essa ciranda de amores e de tensões sexuais entra em conflito quando as três personagens, Ana , Monica e Laura, passam a trabalhar juntas na montagem da peça teatral “Lulu”, escrita pelo dramaturgo Frank Wedekind (um dos ídolos de Walter Hugo Khoury, a quem ele fez outras referências ao longo de sua filmografia).

Feito e refeito ao longo de quase uma década, “As Feras” foi um projeto que transmutou-se a medida que seu diretor Khoury e os produtores que bancaram a obra, em diferentes estágios, discordavam do formato de sua história –embora filmado em 1995 (com, pelo menos, cinco anos anteriores dedicados à pré-produção) “As Feras” só foi lançado mesmo em 2001.

Dessa maneira, acabou recuperando o centro da narrativa o personagem Paulo e suas inquietações existenciais de ordem sexual, nutridas desde muito jovem, a envolver a libido e a sensualidade de sua prima mais velha Sônia (Lúcia Veríssimo), por quem era obcecado. Uma mulher de forte ambivalência sexual cujos envolvimentos amorosos –que prescindiam a presença masculina –sempre o atormentaram. Essa transferência do protagonismo, de Ana para Paulo, é uma postura que aproxima-se mais ao trabalho desenvolvido por Khoury, no qual o sexo (enfatizado no forte erotismo presente e no desfilar de maravilhosas atrizes) tem papel fundamental na gênese da personalidade e dos distúrbios do ser humano.

Embora para os padrões de Khoury o elemento sexual em “As Feras” seja mais figurado do que literal (o erotismo, no Cinema da Retomada, nos idos dos anos 1990, já não tinha mais tanto apelo de público quanto na década anterior), ainda assim há, pelo menos, três cenas consideráveis de sexo, uma delas (não poderia deixar de ser) com a nudez de Claudia Liz no auge da beleza, enquanto outra (um flashback um tanto quanto gratuito) uma cena de lesbianismo entre as atrizes Lúcia Veríssimo e Monique Lafond. Apesar de tudo –indicativo dos espasmos oscilantes em qualidade do cinema brasileiro de então e da idade já avançada a pesar sobre o fôlego narrativo do diretor Khoury –“As Feras” é um trabalho menor em sua vasta obra, dramaticamente frouxo, eroticamente inconcluso, psicologicamente inconstante, o que não o impede de ser, para a época em que se posiciona, um trabalho de destaque.

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