terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Viajantes - Instinto e Desejo


 “Voyagers” é um filme cheio de boas intenções. O que, em geral, define o cinema do diretor Neil Burger, um bom realizador de obras promissoras como “Sem Limites” e “O Ilusionista”, mas que sempre carecem de algo frequentemente incategorizável para se tornarem grande cinema de fato. Talvez seja o detalhe de que, em todos os casos (inclusive o de “Voyagers”), hajam sempre obras cinematográficas muito melhores e mais reconhecidas com as quais a comparação sempre se faz desfavorável.

“Voyagers” parte de uma premissa que lembra “Interestelar” na qual, devido às complicações de sempre, o planeta Terra não mais suporta a vida. A Humanidade, logo, deve procurar refúgio nas estrelas, e um grande êxodo, rumo a um longínquo planeta habitável tem início. A ideia é simples, ainda que espartana e, à sua maneira, cruel: Numa viagem interespacial de cerca de 80 anos, estima-se que somente a terceira geração da tripulação original estará viva para testemunhar a chegada dos humanos a esse novo lar. Ou seja, os tripulantes enviados daqui da Terra dificilmente estarão vivos para ver isso acontecer.

A partir dessas considerações, toda uma nova geração de crianças é concebida. Eles aprendem desde cedo a lidar com a tecnologia, a trabalhar em equipe, e a sentir familiaridade no ambiente recluso, impessoal e estéril de uma nave espacial. O único adulto a voluntariar-se a partir com eles é Richard (Colin Farrell). Durante algum tempo (anos, na verdade!), a viagem segue harmoniosa pelos confins siderais, até que a tripulação (que, à propósito, recebia uma deliberada receita química de inibidores para seus impulsos sexuais e comportamentais mais agressivos) atinge a idade adolescente.

Um deles, Christopher (Tye Sheridan, de “Árvore da Vida” e “Jogador Nº 1”) descobre o misterioso composto químico que lhes é servido diariamente e, junto de seu melhor amigo, Zac (Fionn Whitehead, de “Dunkirk”) decide parar de tomar a fim de ver o que irá acontecer. Logo, Christopher e Zac descobrem sua libido até então adormecida –e partilham ambos de um forte desejo por Sela (Lily Rose-Depp, filha do astro Johnny Depp com a cantora francesa Vanessa Paradis) –e têm seus instintos pessoais desenvolvidos: Christopher descobre sua predisposição para a liderança, enquanto que Zac deixa aflorar uma injustificada agressividade latente.

Quando Richard acaba morrendo em um acidente cercado de circunstâncias nebulosas (algumas apontando até para um possível envolvimento de Zac), o grupo que resta na nave (de jovens adolescentes responsáveis pela viabilidade de todo o plano até a chegada ao planeta, dentro de algumas décadas) se divide entre duas lideranças bem distintas: De um lado o comando racional e civilizado de Christopher, disposto a manter as regras estipuladas por Richard até o fim; do outro, as propostas questionadoras de Zac, cuja iniciativa seduz seus seguidores ao focar na comida (que eles controlam) e não na manutenção dos sistemas operacionais (que ele vê como um trabalho pelo qual nenhum deles teve o direito de escolha).

Christopher, portanto, representa os deveres necessários e fundamentais, e sua liderança aponta às responsabilidades nada satisfatórias, mas essenciais à sobrevivência; enquanto que Zac, é a força da natureza que conclama os demais à seguirem seus instintos, comendo quando tiveram fome, matando e agredindo quando tiverem ódio. Logo, a adesão dos membros tripulantes à um ou a outro grupo leva a uma polarização da jovem tripulação, e consequentemente, ao caos e ao enfrentamento.

Não é preciso muita perspicácia para perceber que, à partir daí, a obra de Neil Burger se mostra uma repaginação do clássico “O Senhor das Moscas”, de William Golding, já adaptado para o cinema em 1963 e 1990, com uma transposição para a ficção científica. Como naquele aclamado trabalho, o filme de Burger observa as tendências de gradual barbárie que contamina os discursos humanos a medida que as vozes mais poderosas de comando à lembrar as conveniências da ética e da moral vão minguando. Uma pena que, talvez pelo ambiente obrigatoriamente confinado, imutável e asséptico do qual o filme nunca sai, talvez pela pouca experiência dramática do elenco jovem predominante ao longo de toda a duração, o filme de Burger rapidamente se torna disperso, quase enfadonho (sequer a promessa de certo erotismo, presente exclusivamente em seus posteres promocionais, chega a se concretizar) mesmo diante da tensão que cresce conforme os ânimos se afunilam.

Nenhum comentário:

Postar um comentário