quarta-feira, 15 de maio de 2024

A Final - Caos Em Wembley


 Uma das paixões inúmeras que se convertem em obsessões pelo mundo afora é o futebol; tal como a religião, a política ou algumas outras predileções muito humanas, o futebol  arregimenta clãs, convertidos e torcidas organizadas que, em nome de seu time do coração, são capazes de selvagerias irracionais dignas do tema de outro bom documentário, “Por Que Odiamos?”.

Este documentário da Netflix, dirigido por Kwabena Oppong e Robert Miller, concentra suas lentes num episódio bastante intrigante, para o qual convergiram diversas tensões e intenções a pairar sobre o subconsciente da sociedade naquela época. Era então o ano de 2021 e a Eurocopa entrava em sua emocionante reta final com a Seleção da Inglaterra conquistando o direito de disputar sua grande final com o adversário da Itália, em pleno Estádio de Wembley, em Londres, um dos mais formidáveis do mundo. Desde 1966 uma seleção britânica não chegava à final do Campeonato Europeu, e o povo inglês viu naquilo uma oportunidade sem igual de redenção –a campanha da Seleção Britânica ao longo de todo campeonato havia sido impecável; seus jovens jogadores eram ídolos engajados e admirados, donos de um carisma incomum para com seus torcedores; e os ingleses experimentavam uma sensação coletiva de que uma chance única para aquela geração (fosse de jogadores, fosse de torcedores) havia enfim chegado.

Marcada para o dia 11 de julho de 2021, a Final da Eurocopa foi cercada de forte expectativa –e o documentário não se furta de registrar o passo a passo da chegada daquele dia saltando entre depoimentos minimalistas das pessoas presentes ( comentaristas esportivos, funcionários do estádio, torcedores ingleses e um único incauto torcedor italiano que se aventurou junto da filha no local) e muitas imagens de arquivo capturas em câmeras ou em celulares. Muitos fatores, afirmam alguns especialistas, colaboraram para o tumulto monumental que logo ganhou corpo: Além do longo período sem uma vitória expressiva do time inglês (o que deixou o país inicialmente num êxtase festivo), havia também a questão da pandemia, flexibilizada poucos meses antes –as pessoas estavam ávidas pela chance de se aglomerarem em uníssono novamente.

Foi assim que, pelo menos oito horas antes do início do jogo, uma multidão de proporções babilônicas se reuniu em locais circundantes ao Estádio de Wembley e, nas horas seguintes, festejaram, gritaram, beberam, se drogaram e causaram tumulto, nessa mesma preocupante ordem. Faltando cinco horas para o jogo, os chefes das equipes de segurança notaram dois elementos cruciais: O primeiro, que o volume da multidão que havia se formado (uma mescla indissociável de desordeiros perigosos e torcedores genuínos) ultrapassava, com uma margem inacreditável e para muito além das estimativas, o número de seguranças providenciado para botar ordem no local caso as coisas ficassem feias; e o segundo, que as unidades de contenção da polícia, sempre de prontidão para situações assim, haviam mobilizado seu contingente para o centro da cidade, julgando que seria lá a região de maior acúmulo de pessoas.

Não foi.

As áreas que albergavam a já implacável massa humana rodeavam o perímetro de Wembley, e as forças policias, seja de carro ou à pé, já não tinham como transpor o mar de gente para chegar até lá.

Quando as catracas foram abertas para liberar a entrada dos torcedores pagantes –os que compraram os ingressos vendidos à preço de ouro! –o caos de fato começou: Ensandecidos pelo consumo de alcool e drogas, instigados pela evidência óbvia de que superavam em número as forças de segurança e movidos por um desejo primitivo quase animalesco de estar dentro do estádio de qualquer maneira, os torcedores forçaram a entrada por diversas vias que representavam um esquema de contenção, derrubando muros, furando bloqueios e até atropelando alguns seguranças.

Os depoimentos dão conta de uma selvageria crescente e implacável. As cenas, a maioria delas flagradas pelas câmeras de segurança e testemunhadas, em primeira mão, pela equipe de manutenção no Q.G. do estádio, são impressionantes ao mostrar o avanço irrefreável do turbilhão humano, enquanto dentro do estádio as festividades seguiam com relativa normalidade –algumas cenas parecem ironizar a circunstância ao justapor as belas sequências de abertura da Grande Final com os momentos de embate brutalizado que começam a se deflagrar do lado de fora.

O Chefe da Segurança de Wembley relata que sentiu-se aliviado, ao fim, quando ironicamente, a Inglaterra foi vencida pela Itália nos pênaltis (para desolação de toda torcida inglesa); seria incalculável o quanto o caos escalaria em violência e fúria caso os torcedores que não tinham como entrar quisessem ir para dentro do campo durante as comemorações –até então, eles tinham sido, à duras penas, contidos por uma última barreira de policiais da tropa de choque.

Embora o tom geral –sobretudo, presente nos depoimentos prestados por testemunhas alguns anos depois do ocorrido –acabe refletindo mais o alívio por algo de pior não ter acontecido, “A Final-Caos Em Wembley” retrata de maneira bastante curiosa e antropológica como o comportamento humano pode facilmente escorregar para a barbárie quando se dá essa combinação incomum e caótica entre anseios apaixonados, o consumo desenfreado de drogas lícitas e a catarse de um pandemia recém-terminada.

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