domingo, 24 de novembro de 2024

Uzumaki


 A cidade de Kurozu é assolada pela ‘maldição das espirais’, e pelo menos no episódio inicial, o mais normal, por assim dizer, desta lúgubre e desafiadora série de animação (detentora de um total de quatro episódios), o único a notar isso é o jovem Shuichi Saito, namorado da protagonista Kirie Goshima. Trabalhando em outra cidade, e vindo para Kurozu ocasionalmente de trem, para ver a namorada e os pais, Shuichi começa a notar os indícios iniciais da maldição que irá tragar o lugar e seus habitantes: Os rios, mesmo os córegos, de lá formam redemoinhos em suas águas, as plantas se enrolam num padrão estranhamente repetitivo e circular, os desenhos sejam nas paredes ou no chão fazem o mesmo, e até mesmo o ar e suas correntes de vento formam pequenos furacões. A espiral se encontra por toda a parte e, de uma forma ou de outra, ela haverá de contaminar a tudo e a todos.

Realizado em preto & branco –com uma sutil adição de cores em determinados momentos que só criam uma sensação intrigante no público, para então voltar a impor o visual monocromático –“Uzumaki” tem muito em comum com as produções de terror que emergiram no circuito comercial do Japão a partir dos anos 1990; a mesma vibração dramática, a mesma alegoria para com as angústias existenciais do povo japonês percorrem cada instante de seu enredo sombrio, angustiante e implacável, não à toa o criador do mangá no qual se inspira é Junji Ito, talvez o maior nome dos quadrinhos de terror no Japão.

“Uzumaki” é a adaptação mais radical e fervorosamente fiel de sua obra para o audio-visual feita até então –lá está a arte em preto & branco, preservada na sua plenitude dos ambientes sombrios (e que só fazem ficar ainda mais sombrios à medida que a trama avança); lá estão as obsessões corrosivas a contaminar o incauto cidadão comum, ignorante dos perigos que espreitam em sombras desconhecidas; e lá estão, acima da tudo, os protagonistas, olhos da plateia, gradualmente conscientes do terror que se abate aos poucos sobre tudo e todos, mas, ao mesmo tempo, impotentes, incapazes de fazer qualquer coisa para aplacar o mal, ou mesmo meramente se salvar.

É aflitivo o final, já do primeira capítulo, onde testemunhamos estarrecidos uma espiral tragar uma jovem colega de escola de Kirie –a jovem tinha uma cicatriz na testa que ganhou aos poucos a forma de espiral, e que suscitava curiosamente grande interesse nos garotos; na verdade, era a própria maldição da espiral em curso, já revelando seu poder hipnótico e, ao fim, a inevitável capacidade de encerrar a vida num ciclo inescapável.

Os episódios seguintes só reforçam essa equação amarga, através de códigos que o autor Junji Ito, traduzido pelo empenho visual e narrativo da equipe técnica, relaciona com o conceito da espiral: O rapaz estudante cuja lerdeza, motivo inicial de bullying entre os colegas, se agrava de tal maneira a transformá-lo, nos dias que seguem, num caracol gigante –cuja casca na qual se refugia é –veja só –uma espiral. Ele será só o primeiro.

Haverão outros: O senhor obcecado pelas formas espirais que se suicida dentro de um objeto de arte encomendado ao ser transformado numa espiral humana com todos os ossos do corpo quebrados (!), a fumaça de sua cremação forma uma espiral nos céus de Kurozu por dias a fio; as mulheres grávidas da maternidade local que adotam o comportamento de mosquitos ao sugar, todas as noites, o sangue de inadvertidas pessoas a perambular no hospital; o cabelos de vários estudantes –a protagonista Kirie inclusa –que adquirem quase vida própria ao formarem gigantes cachos em espiral que vão contaminando suas personalidades e sua força de vontade.

Todo esse horror inusitado e sufocante construído pela narrativa vai galgando mais e mais estágios de absurdo, até corromper a cidade de Kurozu por completo, convertendo todas as casas e construções que compõem o quadro urbano numa gigantesca espiral –e os moradores sobreviventes descobrem-se também eles presos, uma vez que não mais podem deixar a cidade. Como numa espiral que existe em círculos, também eles acabam voltando toda a vez que tentam pegar o caminho para partir!

Talvez pela exatidão com que reproduz o desconforto almejado no mangá, “Uzumaki”, a série, não deixa muito espaço para que o expectador possa se maravilhar com a arte gráfica bem recriada, nem apreciar os inúmeros méritos técnicos da produção –tudo está a serviço de uma premissa que asfixia e angustia o público. Nos quadrinhos, como na literatura, há uma pausa existencial que impõem a leitura o ritmo que cada leitor estabelece como melhor lhe cabe, numa série de TV, não. As inquietações autorais de Junji Ito são, deveras, intoleráveis demais para o expectador médio aguentar.

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