segunda-feira, 6 de abril de 2020

Dolittle

Um personagem de uma série de quatorze livros infanto-juvenis escritos por Hugh Lofting muito famoso nos EUA, mas bem pouco conhecido aqui no Brasil foi o escolhido pelo astro Robert Downey Jr. para tentar dar continuidade à sua bem-sucedida carreira depois que ela ressurgiu das cinzas quando ele interpretou Tony Stark em “Homem de Ferro”, no Universo Marvel Cinematográfico, papel do qual ele se ocupou na última década (com poucos e ocasionais projetos distintos como “Sherlock Holmes”, “Trovão Tropical”, “Um Parto de Viagem” e “O Juiz”) e do qual ele se despediu em “Vingadores-Ultimato”.
O mesmo personagem já havia rendido um musical irregular (ainda que indicado ao Oscar!) em 1968, estrelado por Rex Harrison e dirigido por Richard Fleischer, e, em sua encarnação mais famosa, uma comédia de grande sucesso popular com Eddie Murphy.
Esta nova produção, dirigida por Stephen Gaghan (roteirista de “Traffic” e diretor de “Syriana”, uma escolha um tanto estranha para um filme de apelo quase infantil) baseia-se com mais contundência em elementos dos livros (sobretudo, o segundo “The Voyages of Dr. Dolittle”), valendo-se de admiráveis valores de produção para concretizar sequências que passavam longe nos planos da simplicidade singela das adaptações anteriores.
Assim, “Dolittle” começa numa animação estilizada que relata as origens de seu protagonista: Um médico inglês que ao lado de seu grande amor, Lilly (Kasia Smutniak), viajou por todo o mundo aprendendo as línguas de todos os animais, com os quais passou a ser capaz de se comunicar. Como nos é informado, uma tragédia –a morte da amada ocorrida justamente na única viagem na qual não a acompanhou –o torna alguém recluso, muito falado, mas bem pouco visto.
O filme se inicia de fato quando o jovem Tommy Stubbins (o fraquinho Harry Collett) resolve procurá-lo em sua propriedade (na qual somente os animais estão autorizados a adentrar) para que cure um esquilo ferido. Junto com Tommy, aparece também a bela e jovem Lady Rose (a estreante Carmel Laniado) que apesar da pouca idade chega representando a Família Real da Inglaterra: A Rainha Victoria (Jessie Buckley, da série “Chernobyl”) se encontra doente e antes que seu estado a leve para sempre (permitindo que abutres interesseiros como o personagem vivido por Jim Broadbent assumam a coroa), ela deseja recorrer aos inusitados conhecimentos do Dr. Dolittle para tentar curá-la.
Robert Downey Jr. compõe John Dolittle com a propriedade que lhe é característica: Nada nele lembra trejeitos ou cacoetes de Stark ou quaisquer um de seus personagens anteriores. É um trabalho metódico de um ator dedicado e talentoso.
E, munido de efeitos visuais que transformam a fauna inquieta de diversos animais coadjuvantes num show à parte, o flme transforma as cenas iniciais de interação entre Dolittle e os bichos em um deleite –com destaque para a sequência que ele e seus ‘assistentes’ conseguem fazer um diagnóstico da condição da Rainha Victoria.
É quando “Dolittle” começa então a apresentar suas tremendas fraquezas –um tanto quanto cedo demais... –o bom médico chega à conclusão de que a única cura para a Rainha Victoria é a seiva da ‘Árvore do Édem’ –mesma iguaria que sua amada Lilly morreu tentando encontrar!
Assim, acompanhado de Tommy, que agora deseja ser seu aprendiz, o Dr. Dolittle empreende uma claudicante aventura rumo à terras desconhecidas –que passa pelo reino do ex-sogro, um monarca beligerante vivido por Antonio Banderas –seguido de perto pelos emissários dos conspiradores, liderados pelo médico perverso e apalermado interpretado por Michael Sheen (que até lembra do Dick Vigarista!).
Se muitos dos personagens humanos soam absolutamente rasos e a trama tem inúmeras passagens indefinidas, isso se deve em grande parte pela pouca familiaridade do diretor Gaghan com esse tipo de gênero (o que nos faz perguntar o tempo todo porque ele foi escolhido para o projeto!): Essa inadequação foi detectada pelos produtores em algum momento da produção e o diretor Jonathan Liebesman (de “Tartarugas Ninja”) foi chamado para rodar cenas adicionais e dar mais leveza e coesão ao material. O resultado foi uma narração em off da arara dublada por Emma Thompson (!) que preenche muitas lacunas da trama de forma incômoda e ginasiana e uma irregularidade de estilo, ritmo e lógica que sabota sistematicamente todo o filme, culminando no prato principal do mau gosto, seu clímax, onde os realizadores julgaram ser uma boa ideia mostrar uma cena de humor grosseiro (e, no fim, nada engraçado) em torno de um dragão com prisão de ventre (!!).
Da forma como ficou, para cada acerto, “Dolittle” apresenta um lapso: Seu protagonista conta com um astro empenhado e hábil, mas seu co-protagonista (os olhos da plateia, assim sendo), é vivido por um jovem ator mais perdido que cego em tiroteio; seus efeitos visuais criam animais com uma  fascinante fluidez em cena (e que conta com um elenco estelar de vozes, como Tom Holland, Octavia Spencer, Rami Malek, John Cena, Marion Cottilard, Selena Gomez e Ralph Fiennes), mas seu elenco humano coadjuvante, em compensação, está tão lastimável quanto caricato (com a louvável exceção de Antonio Banderas); e, se o filme conta com a beleza visual proporcionada pela fotografia de Guillermo Navarro, todas as cenas com ela concebidas são entremeadas numa narrativa problemática, a qual o expectador acompanha sem maiores envolvimentos.

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