quinta-feira, 30 de maio de 2024

O Dublê


 “The Fall Guy”, a exemplo de inúmeras produções, hoje cultuadas, dos anos 1980, ganhou sua versão cinematográfica (era antes uma série de TV) repaginada e incrementada com todos os divertidos exageros do cinema comercial atual. Ao que parece, entretanto, os funcionários das distribuidoras nacionais são jovens demais lembrar que a série “The Fall Guy”, estrelada por Lee Majors, levava aqui no Brasil o título de “Duro Na Queda” –esta versão cinematográfica chega aqui intitulada meramente como “O Dublê” (!?).

Como em muitas obras já reaproveitadas em filmes turbinados e frequentemente descerebrados, “The Fall Guy”, o filme, amplifica o conceito tímido de ação da série (que acabava um pouco disfarçado com um viés investigativo) com sequências de luta e/ou perseguições elevadas a níveis inacreditáveis. O grande trunfo deste projeto, em si, foi mesmo poder contar com a direção de David Leitch.

Outrora um requisitado coordenador de  dublês da indústria (fez, entre outros, “Clube da Luta”, “300” e “O Ultimato Bourne”), Leitch faz de “The Fall Guy” não apenas um filme pulsante, palpitante e fluído (sua especialidade como diretor), mas também um enaltecimento indelével em forma de longa-metragem de sua antiga profissão: Não faltam menções, em diversas ocasiões do roteiro, ao fato de que clássicos como “Rocky”, “Coração Valente” e “Titanic” jamais seriam realizados sem dublês, ou de que a classe, tão fundamental à indústria cinematográfica, não tem um categoria no Oscar que a prestigie.

No fim das contas, é a direção apaixonada de David Leitch que faz toda a diferença na história de Colt Seavers (Ryan Gosling, sensacional), dublê profissional –e, na maior parte do tempo, quase sempre do imaturo astro Tom Ryder (Aaron Johnson). Aposentado após um acidente num set de filmagens, Colt é convocado de volta à ativa pela produtora  Gail Meyer (Hannah Waddingham, de “Os Miseráveis”) para participar de um filme feito na Austrália e dirigido por Jody Moreno (Emily Blunt), um romance mal-resolvido de seu passado.

Contudo, as circunstâncias são mais complicadas: Gail chamou Colt porque o astro da produção (o próprio Tom Ryder), simplesmente desapareceu. Como o sumiço do ator principal pode interromper a realização do primeiro filme da carreira de Jody, Colt aceita a incumbência, dando uma de detetive nas horas vagas, enquanto atua paralelamente no filme, levando bordoadas usuais como dublê.

O diretor Leitch é inteligente e inquieto na aproveitação desses expedientes –ele molda um vibrante filme de ação (aproveitando a desenvoltura fora do comum de Ryan Gosling), oscilando entre os acréscimos de detalhes investigativos de sua trama (com desenlaces até bem inesperados), inspirados lampejos de metalinguagem (o ‘filme dentro do filme’ proporciona sacadas muitas vezes hilariantes) e os altos e baixos da relação afetiva entre Colt e Jody, construída em oportunidades pouco usuais pela narrativa –e ainda se vale de um gancho muito envolvente e sedutor das obras oitentistas que ele tanto homenageia: O protagonista íntegro e valoroso, cuja integridade e valor escapa (graças ao habilidoso do roteiro) dos olhos de todos, inclusive da mocinha que ele ama, exceto dos da plateia, que por conta disso, identifica-se plenamente com ele.

Não faltam filmes fabulosos na filmografia de David Leitch, cada qual ostentando uma mescla desigual, competente e surpreendentemente funcional de filme de ação com outras variantes da narrativa cinematográfica, “The Fall Guy”, em seus acertos admiráveis (para muito além de seus eventuais lapsos) traz a perícia insuspeita para cenas de ação e pancadaria, definindo com primor a homenagem subliminar que ele faz à profissão de dublê e ao romantismo truculento e nostálgico da década de 1980.

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