terça-feira, 19 de novembro de 2019

Os Miseráveis

Apesar de Anne Hathaway ter levado (com méritos) o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 2013 pela sua poderosa presença como a trágica Fantine na primeira parte da trama (e ela de fato interpreta com esforço e primazia), o prêmio mais merecido para o filme de Tom Hooper foi mesmo o Oscar de Melhor Mixagem de Som.
Explica-se: “Os Miseráveis” é uma espécie muito incomum de musical; ele foi rodado com gravação sincrônica dos atores cantando para a câmera, a exemplo de muitas outras obras pregressas, no entanto, num escopo técnico antes tido por inimaginável, daí ser extraordinariamente notável a capacidade dos técnicos em capturar as vozes dos atores, filtrá-las de toda infinidade de sons poluentes e eventuais da cena e emoldurá-las com a melodia da trilha sonora para dali obter as músicas que compõem e ajudam sistematicamente a contar a história antes imaginada pelo escritor Victor Hugo no romance literário, e depois adaptada por Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil, na versão teatral e musical que tanto sucesso fez nos palcos para então aqui ser vertida para o cinema.
O ano é 1817. Conhecemos o protagonista, Jean Valjean (Hugh Jackman, maravilhoso) um francês condenado à escravidão por ceder à fome; roubou um pedaço de pão para si a para a própria irmã. Durante sua liberdade condicional (que chega depois de 19 longos anos), Valjean aproveita e foge. Logo ele descobre que precisa abandonar sua identidade se tiver alguma intenção de prosperar naquela França do Século XIX: A discriminação para com ex-prisioneiros, como é o caso dele, chega a ser intolerável.
Descobre outra coisa também: O valor da solidariedade e do apego à Deus.
Cerca de oito anos se passam, e então Valjean (chamado agora pela nobre alcunha de Monsieur Prefeito!) é um homem rico, dono de uma tecelagem. É lá que trabalha Fantine (Anne), moça virtuosa (busca sempre fugir do assédio insidioso do contramestre) que não tarda a ter sua própria cota de drama: Mandada embora do emprego graças às crueldades perpetradas por suas colegas, Fantine não tem dinheiro para sustentar sua filhinha Cosette, e por conta disso, vende seus cabelos, depois seus dentes e, por fim, sua honra (se prostitui) para então perecer. Em seu leito de morte, Valjean –que sente-se culpado por não ter tido a oportunidade de ampará-la –lhe promete que será um pai para Cosette dali para frente, e a tira de seus insensíveis e inescrupulosos tutores, o casal Thénardier (interpretado com histrionismo por Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter).
Os anos tornam a se passar com Valjean sempre sob a sombra da rancorosa perseguição do obstinado Inspetor Javert (Russell Crowe, equilibrando a truculência do personagem com uma inesperada desenvoltura como cantor).
Então vivida por Amanda Seyfried, Cosette se apaixona por Marius (Eddie Redmayne), um jovem abastado que engrossa as fileiras da Revolução Francesa na luta pelos direitos do povo oprimido. Cosette e Marius formam com a filha dos Thénardier, Eponine (Samantha Banks, única oriunda da montagem teatral), um triângulo amoroso a movimentar a trama.
Neste ponto, Valjean se vê num dilema entre tornar a fugir (e recomeçar a vida), mais uma vez longe do encalço de Javert, ou finalmente separar-se Cosette, que ele ama como filha, deixando-a tentar a felicidade ao lado de Marius.
Não faltam tristezas em profusão a se abater sobre os personagens neste trabalho de Tom Hooper no qual o expectador deve saber, de antemão, que todos os diálogos são cantados ao invés de declamados –com isso, “Os Miseráveis” é uma sucessão de canções ocasionalmente antológicas, tão famosas que muitos talvez nem saibam que provêem desta obra, como é o caso da sofrida e ritmada “Look Down”, da célebre e visceral “I Dreamed A Dream”, da envolvente “My Life, A Heart Full Of Love”, e de várias outras.
Nesse sentido, o trabalho do diretor Hooper (que antes havia levado o Oscar de Melhor Filme por “O Discurso do Rei”) não prima por modéstia: Em sua exuberância rasgada e seu romantismo intoxicante, ele por vezes pode exaurir o expectador. Entretanto, para aqueles dentre o público que forem capazes de lhe fazer a travessia, “Os Miseráveis” reserva uma experiência de arrebatamento insuspeito e emoção irrestrita.

Nenhum comentário:

Postar um comentário