A evocativa paisagem desértica e arenosa que
emoldura o protagonista do início ao fim é uma espécie de sina à qual o diretor
Hiroshi Teshigahara submeterá seu herói e, pelo tempo de duração do filme,
também o expectador: É inegável que “A Mulher de Areia” seja uma parábola
desgastante e pessimista sobre o vazio existencial ao contrapor, em sua
crueldade conceitual, o protagonista culto, consciente e urbano a um destino
primitivo e árido vislumbrando a partir daí seu processo de adaptação e
abnegação dentro dessa existência.
Tal protagonista é Eiji Okada (de “Hiroshima, Meu
Amor” e “Guerra de Espiões”). Ele interpreta o personagem principal anônimo, um
professor entomologista cujo fascínio por insetos o atrai até aquele deserto
não identificado.
Outra coisa o atrai também: Um súbito desdém
pela civilização que ele expressa num monólogo corriqueiro enquanto descansa ao
sol. Talvez como forma de severo castigo em resposta à essa desfaçatez para com
a vida moderna, surge um camponês a lhe abordar com sugestões cômodas.
Precisa de um lugar para pernoitar? Tem sede?
Fome? Tudo pode ser resolvido numa hospitaleira cabana não muito longe dali.
Disposto a encontrar um lugar para ficar até a manhã seguinte, o professor
ingenuamente aceita as sugestões e deixa-se guiar até uma casa humilde situada
num pequeno recôncavo das dunas –tão enraizada nesse buraco ela é que ele
precisa descer até lá numa escada de cordas.
Lá, ele é recebido com hospitalidade insuspeita
pela moradora (Kyôko Kishida, de “Kwaidan-As Quatro Faces do Medo”) que, num
diálogo até trivial, lhe explica em linhas gerais, a rotina de sua moradia ali:
Ela recebe rações e o que mais precisar dos moradores do vilarejo (um dos quais
o guiou até ali), e deve encher baldes e mais baldes de areia toda a noite para
impedir que sua casa seja engolida pela duna.
Ela nunca sai de lá –destino antes
compartilhado pelo marido e pela filha, tragados pela areia.
Ao amanhecer, contudo, o professor tem uma
surpresa que vai se tornando gradualmente aflitiva: A escada de cordas que
representava o único meio de sair dali foi removida.
Agora, a mesma sina a pesar sobre a mulher da
areia pesa sobre ele também, e se antes essa informação lhe era banal, agora,
ele compreende toda a claustrofobia ali esboçada.
Assim, como a ladeira é íngreme demais, e suas
areias instáveis demais para escalar, o professor espera enquanto estabelece
com a mulher da areia uma relação ambígua que oscila entre diversos humores a
medida que os anos (sim, anos!) vão se passando sem que ele consiga um meio de
escapar.
Muito do filme é preenchido pela percepção de
pesadelo ao qual o protagonista se vê literalmente imerso e, sobretudo, pela
relação sempre mutável com a mulher da areia que flutua por contornos
intratáveis e abusivos (fruto de um latente machismo cultural), eróticos e
passionais (pois, com o tempo, é uma relação afinal de amor que ele constrói
com ela), dissimulados e aprazíveis (definido por todo ônus de um
relacionamento a dois).
O diretor Teshigahara impõe assim, através de
um conceito poderosamente simples –e tão mais poderoso porque ele se recusa a
fornecer informações mais detalhadas –uma circunstância claustrofóbica que
serve à análise da condição humana presente em seu personagem principal: O
professor experimenta estágios distintos na sua convivência com aquela absurda
enrascada: A perplexidade inicial (onde custa a acreditar em seu infortúnio),
a indignação (que se reflete na relação amor\ódio com a sempre dócil mulher da
areia), a revolta (na qual tem ímpetos violentos para com a única figura
passível de ser punida por perto, a própria mulher de areia), a negociação
(quando elabora planos de fuga que, a medida que o desespero se consolida, vão
se tornando mais intrincados), a euforia (quando, vez ou outra, até consegue
sair do buraco nas dunas, mas, por forças externas, sempre acaba voltando) e,
por fim, a resignação (ao perceber, na parte final que, tanto tempo depois, ele
já adotou a duna como uma espécie de lar e a mulher de areia como uma
companheira sem a qual ele já não tem mais condições de viver).
Eis, portanto, uma saga de
aceitação narrada como um conto de terror carregado de subterfúgios
subentendidos e densa psicologia, onde o próprio elemento da areia (tão
onipresente em cena quanto a água é onipresente no posterior “Stalker”, de
Andrei Tarkovski) serve de metáfora às transições da alma humana e dos inúmeros
sentimentos que borbulham na mente em meio à rotina de cada um.
Opa! tardo a ver, mas esta resenha saiu de uma memória fresca. Quem diria, depois de assisti-lo legendado em inglês, numa tarde de sábado (e afirmando não haver a película lhe agradado), produziste um texto magistralmente poético (como é de seu feitio). Não posso deixar de dar uma contribuição.
ResponderExcluirCom a câmera achegada a seu olho direito, evidenciando o característico contorno da pálpebra, a tez umedecida de suor, os fios de cabelo longos, emaranhados e envoltos em minúsculos fragmentos de areia, repentinamente seu olhar se emerge, de um aspecto introspectivo para um pronunciamento ao outro. Então, retornando ao real (será mesmo? que é isso?), a personagem não nomeada de Kyoko Kishida diz: “The sand takes moisture”.
Como no paralelo realizado a pouco, se 砂の女 é coberto pela areia, em Tarkovski abunda a água (e água em abundância!). Desde “A Infância de Ivan” a “O Sacrifício”, o telespectador é mergulhado em uma atmosfera de umidade. Quando esta substância essencial à vida não é apresentada em seu estado líquido, a formar lagos estagnados e lamacentos, rios em movimento constante, mares agitados (Solaris modelado ao embalar das ondas, vejamos), ou chuva a lavar toda superfície, ela aparece como neblina de amanheceres fugidios e madrugadas densas de obscuridade. Todavia, que diferença há entre a areia e a água, a aridez e aquosidade? São dois extremos, que na maior distância de suas extremidades se aproximam a ponto de quase se tocarem. A que passo de disparidade se encontram a dor mais agoniante e a euforia extasiante? Uma repudiada e outra almejada incessantemente (para não dizer ilusoriamente). Mas, ambas fugazes, passageiras e sobretudo essenciais. Assim como a água, que gera a vida, a areia, símbolo da morte e da dificuldade (em “Ran”, Lorde Hidetora, no que fica louco, vagueia sem cessar por um deserto), é igualmente flexível. As duas são fáceis de manejar e apresentam obstinação em conter-se (na exceção de 風 ou diante dum recôncavo fisicamente elevado nas bordas). Elas são fluídas (líquidas no entender de Bauman). Se trataria aqui, no caso de 勅使河原 宏 principalmente (não da obra como um todo e sim deste filme em específico), do uso de simbologias na alusão a uma emergente condição pós-moderna?
Na efervescência dos anos rebeldes, a ordem do dia era a ruptura. Martelar se tornou um padrão que ressoa à atualidade. Muitos foram os atores desta peça marcante. E em um clima que vibrou em torno do globo, no Japão algumas figuras podem ser destacadas (apenas no intuito de estabelecer “conexões”, entre os frangalhos culturais). Protagonizaram “Suna no Onna”, creditado àquele apaixonado pela arte do “ikebana”, Kyoko Kishida e Eiji Okada. Este último, além de estrelar no tão bem conhecido filme de Resnais e em “Guerra de Espiões” (ao lado de Shintaro Ishihara, o ex-insurgente e hoje político conservador – traidor da causa, bem o gostariam de caracterizar alguns), teve participações em outros trabalhos de Masahiro Shinoda, vide “Assassinato” e “Chinmoku” (inspirado em livro homônimo de Shusaku Endo, que nos últimos anos serviu de base para uma produção de Steven Spielberg). Já Kishida atuou no trabalho de despedida de Yasujiro Ozu, “A Rotina tem seu Encanto”, ao lado de Shima Iwashita. Atriz que animou muitos papéis sob direção de Shinoda, seu marido. Fora “Chinmoku” e “Assassinato”, não é possível esquecer a personalidade austera, símbolo de uma maturidade de um sexo secundário, com que dá vida à personagem coadjuvante de “Kazeki no Mori” e heroiniza “Himiko”. Salvo as “conexões” (paralélicas, isoladas, entrelaçantes de sujeitos que gritavam pelo individualismo autoral) entre diretores, atores, literatos e o estrangeiro, “conexões” também podem ser realizadas na imensidão infindável do ar. Onde se propagou o som registrado naquele tempo, lá esteve o criador de melodias Toru Takemitsu (compositor da trilha sonora de Ran e Dodeskaden), elemento de aproximação de muitas produções de Shinoda (incluindo Flor Seca) com duas de Hiroshi Teshigahara: “A Face do Outro” e, o ainda inédito no Brasil, “Mulher de Areia”.