segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Stalker

A primeira seqüência de “Stalker” é um paradoxo da parte do diretor Andrei Tarkovski. O protagonista (denominado Stalker) espera, desolado, deitado numa cama junto da esposa e da filha. É filmada num tom sépia monocromático que remete aos filmes preto & branco. Sem música e sem diálogos –embora efeitos sonoros interfiram na quietude –a cena é de um silêncio que remete ao cinema mudo. O aspecto que emula os filmes do princípio do cinema só é quebrado quando os personagens começam a discorrer seu drama, suas angústias e suas aflições: Tal dramaturgia –rica na obra de Tarkovski –não teria expressão na era do cinema mudo. É como se Tarkovski observasse o quão diferente ele próprio seria como cineasta se tivesse vivido em outro tempo.
Essa reflexão (a de “ser” cineasta) acompanha toda a jornada de “Stalker”. Como acompanha outras reflexões também, que se estendem ao longo de outros filmes de Tarkovski.
O Stalker (Alexsandr Kadjanovsky) é dono de uma capacidade singular. Pode conduzir outras pessoas para dentro de uma região conhecida como Zona –surgida a partir da queda de um meteoro e possivelmente de origem alienígena. Lá, em um local específico conhecido como Quarto, dizem que os desejos mais profundos e desesperados do ser humano se realizam. Só os chamados Stalkers são capazes de ir até lá.
A pagar o Stalker pela chance de adentrar a Zona estão duas pessoas de índole estranha e beligerante. O Professor (Nikolai Grinko), cujas intenções ele nunca deixa que fiquem claras, e o Escritor (Anatoli Solonitsyn) que em seu vazio existencial, talvez até em seu desprendimento com a vida, deseja pedir por mais inspiração –mas, nem disso ele está muito certo.
O caminho até a Zona é cheio de percalços alarmantes: Militares cercaram o lugar para impedir seu acesso e, uma vez lá, a própria natureza incomum da região transforma sua travessia numa jornada tortuosa e desafiadora.
Como no clássico “O Mágico de Oz”, Tarkovski dá ao mundo fantástico visitado pelos personagens a paleta de uma filmagem colorida, enquanto impõe o preto & branco ao mundo real. A Zona é reproduzida nos escombros desoladores de Chernobyl e, nesse mundo de radiação indomada, o diretor define o clima e o tom de sua obra por meio da água: O som do gotejar, a umidade impregnada em tudo, os objetos abandonados e submersos em poças, os personagens perambulando dentro de um banhado sem fim.
A água, em “Stalker”, é onipresente.
Como em “Solaris”, o diretor usa de um expediente de ficção científica para observar as abstrações reflexivas e imponderáveis do ser humano. Para o cinismo do Escritor, os esforços de tantas pessoas em busca de uma realização mágica de seus desejos é uma piada –no entanto, como eles, ele também está ali. Para o Professor, há um perigo incalculável na possibilidade de realizar desejos da pessoa errada, talvez de um déspota ou um genocida. Para o Stalker a tarefa de conduzir pessoas à Zona lhe dá algum propósito pelo qual, em sua insignificância, ele pode se sentir especial.
Por mais que a dinâmica entre essas três considerações ocupe o cerne da narrativa, Tarkovski frustra seus protagonistas tirando deles qualquer resolução conclusiva –o regresso para o mundo real e monocromático os confronta com as mesmas desolações de quando partiram. E então, a angústia do Stalker fica mais perceptível: a falta de fé –em especial, vista em seus companheiros de jornada recente –é de uma profundidade lamentável, e na constatação dela o Stalker sofre.

Alheia a tudo, a filha dele é mostrada no plano final em detalhes tão mínimos quanto curiosos: A menina nasceu com as pernas debilitadas, ainda assim, Tarkovski enfatiza a aura superior que a cerca –essa cena recupera, no mundo exterior, a cor que só existia na Zona –e os poderes psíquicos que ela desenvolve. Um voto de confiança nas próximas gerações, talvez.

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