quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Marcas da Violência

Ao adaptar uma obscura história em quadrinhos em meados de 2004, Cronenberg estava fazendo os movimentos decisivos para voltar a ser um autor relevante perante a indústria hollywoodiana (embora, na Europa, por exemplo, ele nunca tenha deixado de ser visto como um mestre maior) após quase uma década confinado em projetos rotulados como poucos acessíveis, e de improvável viabilização no circuito comercial.
Um dos fatores que convergiram para a boa sorte deste novo projeto (uma vez que se olharmos bem, ele em nada difere das experiências audazes que Cronenberg sempre fez) foi a escalação do ator Viggo Mortensen, catapultado ao estrelato por sua interpretação de Aragorn em “O Senhor dos Anéis”.
Mortensen buscou neste trabalho de Cronenberg o quê lhe faltava na carreira de intérprete –o respeito que uma rica atuação como a que ele entrega aqui pode proporcionar; não à toa, a partir deste projeto, Mortensen foi o ator-assinatura de Cronenberg pelos próximos três filmes que realizou.
Viggo Mortensen emprega, aqui, muitas de suas particularidades como ator –que ficaram visíveis na superprodução de Peter Jackson, mas aqui encontram vasto espaço para experimentação –numa sutil composição de um pacato morador de cidadezinha norte-americana. Quando dois homens violentos ameaçam seu estabelecimento e a segurança de seus clientes, ele surpreende a todos dominando e matando os bandidos.
Há tantos elementos genialmente embutidos nessa atuação que as surpresas e revelações que se seguem acerca do personagem, em momento algum soam como inverossimilhança ou incredulidade –o olhar de Mortensen carrega tanta verdade que as contradições sobre seu personagem (e sobre seu caráter) que se chocam uma contra a outra a medida que novas revelações surgem, levam o expectador numa espiral de fé e descrença.
O tal acontecimento ganha manchetes por todo o país e atrai para a pequena cidade um grupo de mafiosos (liderados por um soturno e ameaçador Ed Harris) que afirma com total convicção que o personagem de Mortensen, alçado à categoria de herói local, mesmo casado e pai de família, não é a pessoa que diz ser.
Com esse retorno do passado, retornam também revelações surpreendentes de uma vida que ele julgava ter deixado para trás.
Embora a narrativa pareça estar amparada em inúmeros subterfúgios que já surgiam antes em tantos outros filmes, Cronenberg, como em seus outros trabalhos, realiza um estudo distanciado e até inquisitivo da natureza bárbara do homem, conforme infunde ao filme sua vasta experiência na capacidade inata de subverter as expectativas a partir da estrutura convencional da obra.

Não se deixem enganar pelas aparências, o resultado é um de seus mais primorosos trabalhos. 

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