sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Muito Além do Jardim

Sempre um artista talentoso, empenhado e versátil, Peter Sellers ressentiu-se durante muito tempo pelo fato de ser visto, por público e crítica, sob a restritiva pecha de grande comediante; a despeito do avassalador sucesso da série “A Pantera Cor-de-Rosa”.
Para ele, poucas foram as chances reais de mostrar suas variadas capacidades interpretativas, como em “Doutor Fantástico”, de Kubrick, onde ele interpretou cerca de cinco diferentes personagens, e pelo qual conquistou sua primeira das duas únicas indicações ao Oscar de sua carreira.
A segunda indicação veio pelo protagonista dramático de “Muito Além do Jardim”, cuja produção foi um esforço esmerado de Seller –e sua viabilização só se tornou possível graças ao seu status de astro.
Numa atuação composta de silêncios e olhares de desamparo, Sellers é Chance, um humilde jardineiro que sofre de ligeiro retardo mental, o quê não o impediu de servir muito bem seu patrão a vida toda. Sua rotina consistia em cuidar do jardim de dia e assistir TV à noite, até que seu patrão veio a falecer, obrigando Chance a encarar o mundo que existia do lado de fora da casa onde sempre morou (em uma referência tipicamente anos 1970, com o personagem dando os primeiros passos para fora da casa ao som de “Assim Falou Zaratustra”, de “2001”, numa inapropriada versão discoteque).
É aí que Chance acaba sendo confundido com seu finado patrão por um grupo de burgueses –a confusão é bastante plausível, uma vez que o patrão chamava-se Chauncey Gardiner, e ele apresenta-se sempre como “Chance, the gardner –jardineiro em inglês”, contudo o trocadilho se mostra intraduzível em português.
Tomado como ricaço proeminente e culto, o jardineiro Chance diz aos outros apenas aquilo que ele sabe (essencialmente, jardinagem) e que ouviu na TV, mas as pessoas, aparentemente incapazes de prestar um pouco mais de atenção (exceto por um humilde mordomo que próximo do desfecho percebe tudo), interpretam suas afirmações aleatórias como se fossem pensamentos absolutamente refinados e inteligentes sobre os assuntos discutidos (embora essa jogada constante do roteiro soe, sobretudo hoje, como uma atroz inocência da parte dos realizadores), o quê acabam elevando a reputação de Chance a ponto dele ser cogitado, no final do filme, como candidato à presidência dos EUA.
A cena final –não creio que isso acarrete spoiler já que este é um filme sem maiores reviravoltas –mostra Chance caminhado gaiatamente sobre um rio, numa quase paródia bíblica do enaltecimento desmedido que os pouco perspicazes fizeram dele. Pode sugerir também –como alguns estipularam –o desaparecimento de Chance em meio às águas, deixando para trás uma legião de pobres e deslumbrados enganados.
As interpretações e deduções para tal metáfora (inclusive a espinhosa crítica à devoção religiosa) ficam –para fins de evitar controvérsia –à cargo exclusivo do expectador, mas à época, ninguém do público polemizou o filme por isso, encantados que estavam com o belo e diferenciado trabalho de um Peter Sellers, sereno e austero, longe dos trejeitos cômicos de seu mais famoso personagem, o inspetor Clousot.

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