Sempre um artista talentoso, empenhado e
versátil, Peter Sellers ressentiu-se durante muito tempo pelo fato de ser visto,
por público e crítica, sob a restritiva pecha de grande comediante; a despeito
do avassalador sucesso da série “A Pantera Cor-de-Rosa”.
Para ele, poucas foram as chances reais de
mostrar suas variadas capacidades interpretativas, como em “Doutor Fantástico”,
de Kubrick, onde ele interpretou cerca de cinco diferentes personagens, e pelo
qual conquistou sua primeira das duas únicas indicações ao Oscar de sua
carreira.
A segunda indicação veio pelo protagonista
dramático de “Muito Além do Jardim”, cuja produção foi um esforço esmerado de
Seller –e sua viabilização só se tornou possível graças ao seu status de astro.
Numa atuação composta de silêncios e olhares de
desamparo, Sellers é Chance, um humilde jardineiro que sofre de ligeiro retardo
mental, o quê não o impediu de servir muito bem seu patrão a vida toda. Sua rotina
consistia em cuidar do jardim de dia e assistir TV à noite, até que seu patrão
veio a falecer, obrigando Chance a encarar o mundo que existia do lado de fora
da casa onde sempre morou (em uma referência tipicamente anos 1970, com o
personagem dando os primeiros passos para fora da casa ao som de “Assim Falou
Zaratustra”, de “2001”, numa inapropriada versão discoteque).
É aí que Chance acaba sendo confundido com seu
finado patrão por um grupo de burgueses –a confusão é bastante plausível, uma
vez que o patrão chamava-se Chauncey Gardiner, e ele apresenta-se sempre como “Chance,
the gardner –jardineiro em inglês”, contudo o trocadilho se mostra intraduzível
em português.
Tomado como ricaço proeminente e culto, o
jardineiro Chance diz aos outros apenas aquilo que ele sabe (essencialmente,
jardinagem) e que ouviu na TV, mas as pessoas, aparentemente incapazes de
prestar um pouco mais de atenção (exceto por um humilde mordomo que próximo do
desfecho percebe tudo), interpretam suas afirmações aleatórias como se fossem
pensamentos absolutamente refinados e inteligentes sobre os assuntos discutidos
(embora essa jogada constante do roteiro soe, sobretudo hoje, como uma atroz
inocência da parte dos realizadores), o quê acabam elevando a reputação de
Chance a ponto dele ser cogitado, no final do filme, como candidato à presidência
dos EUA.
A cena final –não creio que isso acarrete
spoiler já que este é um filme sem maiores reviravoltas –mostra Chance
caminhado gaiatamente sobre um rio, numa quase paródia bíblica do enaltecimento
desmedido que os pouco perspicazes fizeram dele. Pode sugerir também –como alguns
estipularam –o desaparecimento de Chance em meio às águas, deixando para trás
uma legião de pobres e deslumbrados enganados.
As interpretações e deduções
para tal metáfora (inclusive a espinhosa crítica à devoção religiosa) ficam –para
fins de evitar controvérsia –à cargo exclusivo do expectador, mas à época,
ninguém do público polemizou o filme por isso, encantados que estavam com o
belo e diferenciado trabalho de um Peter Sellers, sereno e austero, longe dos
trejeitos cômicos de seu mais famoso personagem, o inspetor Clousot.
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