Causou
muita comoção (como causa comoção tudo que mexe com os dogmas do catolicismo)
esta arrojada atualização da história da Virgem Maria concebida por Jean Luc
Godard, lançada em 1989, que se mostrou mais audaz e controversa do que a
versão despojada de Pier Paolo Passolini em “O Evangelho Segundo São Mateus”.
Onde
Passolini enxergava a urgência e a maleabilidade da juventude, Godard enxergava
a necessidade de transposição (e, por conseguinte, aproximação) dessa mesma
juventude.
A forma
que encontrou para expressar tais anseios para materializar sua fé foi trazer o
cânone religioso para o presente, cercando a mesma premissa de elementos sórdidos
e mundanos da atualidade.
Polêmico,
Godard não evitou ousadias na forma com que abordou o projeto e a Maria –impulsiva
e rebelde –de Myriem Roussel aparece até mesmo em cenas de nudez que, em meio
aos anos 1980, geraram inúmeras controvérsias.
Quando
ela surge grávida, o Anjo Gabriel (Philippe Lacoste) –que aqui aparece inesperadamente
agressivo, acompanhado por uma petulante parceira juvenil que o corrige e o
retruca –instrui o pouco crédulo José (Thierry Rode) de que é seu propósito
desposá-la e criar o filho que ela trás em seu ventre, um messias vindouro.
Em sua frustração, José até arruma uma amante: Uma rápida participação de Juliette Binoche.
Em sua frustração, José até arruma uma amante: Uma rápida participação de Juliette Binoche.
Simultaneamente
à este conto desconcertante –e isso é bastante próprio de Godard –ele insere
uma outra linha narrativa, onde acompanhamos um professor de natureza essencialmente
racional (suas dissertações acerca do surgimento da vida na Terra assim como insistentes teorias acerca de alienígenas surgem enfáticas
na narrativa) envolvendo-se com uma aluna: A razão sobrepujando-se ao instinto,
em paralelo à uma transposição quase desmistificadora da religião enquanto
conceito: Afinal, tendo engravidado sem uma explicação plausível, à quais calúnias
e julgamentos alheios e pessoais teria se submetido Maria?
Em
todos os personagens, essa recepção de seu papel num âmbito de espiritualidade é
mostrada de forma gradativa e dolorosa, trespassada por auto-questionamento (e
particularmente Maria é vista por um prisma de contínua tortura dos desejos –a bela
nudez da atriz é amplamente aproveitada –na qual tenta reprimir as vontades da
carne na tentativa de abraçar o abstrato e o espiritual). Essa é, enfim, uma
forma de Godard vislumbrar as dúvidas possíveis que acometeram tais personagens
envolvidos numa premissa que é narrada já a dois mil anos.
O
epílogo de “Je Vous Salue Marie” salta alguns anos no tempo para acompanhar
Maria, com seu filho, o pequeno Jesus, casada com um quase indiferente José. O
registro familiar de Godard esforça-se em se mostrar banal destituído de
enaltecimento, mas ele pontua detalhes que podem ser conferidos pelos mais
atentos e que apontam para a dualidade de Maria, a resignação de José, a
impetuosidade do menino.
A graça
manifestada passa praticamente à revelia da humanidade, tão distraída com seu
dia-a-dia e sua cultura pop, e Maria, em seu descuido, termina cedendo aos caprichos da vaidade (o batom com o qual pinta seus lábios). O último take simboliza um buraco negro, (o espaço sideral estava muito presente neste filme) no close da boca de Myriem.
Na
conclusão pessimista de Godard, a raça humana perdeu sua chance de transcendência.
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