sábado, 15 de abril de 2017

Je Vous Salue, Marie

Causou muita comoção (como causa comoção tudo que mexe com os dogmas do catolicismo) esta arrojada atualização da história da Virgem Maria concebida por Jean Luc Godard, lançada em 1989, que se mostrou mais audaz e controversa do que a versão despojada de Pier Paolo Passolini em “O Evangelho Segundo São Mateus”.
Onde Passolini enxergava a urgência e a maleabilidade da juventude, Godard enxergava a necessidade de transposição (e, por conseguinte, aproximação) dessa mesma juventude.
A forma que encontrou para expressar tais anseios para materializar sua fé foi trazer o cânone religioso para o presente, cercando a mesma premissa de elementos sórdidos e mundanos da atualidade.
Polêmico, Godard não evitou ousadias na forma com que abordou o projeto e a Maria –impulsiva e rebelde –de Myriem Roussel aparece até mesmo em cenas de nudez que, em meio aos anos 1980, geraram inúmeras controvérsias.
Quando ela surge grávida, o Anjo Gabriel (Philippe Lacoste) –que aqui aparece inesperadamente agressivo, acompanhado por uma petulante parceira juvenil que o corrige e o retruca –instrui o pouco crédulo José (Thierry Rode) de que é seu propósito desposá-la e criar o filho que ela trás em seu ventre, um messias vindouro.
Em sua frustração, José até arruma uma amante: Uma rápida participação de Juliette Binoche.
Simultaneamente à este conto desconcertante –e isso é bastante próprio de Godard –ele insere uma outra linha narrativa, onde acompanhamos um professor de natureza essencialmente racional (suas dissertações acerca do surgimento da vida na Terra assim como insistentes teorias acerca de alienígenas surgem enfáticas na narrativa) envolvendo-se com uma aluna: A razão sobrepujando-se ao instinto, em paralelo à uma transposição quase desmistificadora da religião enquanto conceito: Afinal, tendo engravidado sem uma explicação plausível, à quais calúnias e julgamentos alheios e pessoais teria se submetido Maria?
Em todos os personagens, essa recepção de seu papel num âmbito de espiritualidade é mostrada de forma gradativa e dolorosa, trespassada por auto-questionamento (e particularmente Maria é vista por um prisma de contínua tortura dos desejos –a bela nudez da atriz é amplamente aproveitada –na qual tenta reprimir as vontades da carne na tentativa de abraçar o abstrato e o espiritual). Essa é, enfim, uma forma de Godard vislumbrar as dúvidas possíveis que acometeram tais personagens envolvidos numa premissa que é narrada já a dois mil anos.
O epílogo de “Je Vous Salue Marie” salta alguns anos no tempo para acompanhar Maria, com seu filho, o pequeno Jesus, casada com um quase indiferente José. O registro familiar de Godard esforça-se em se mostrar banal destituído de enaltecimento, mas ele pontua detalhes que podem ser conferidos pelos mais atentos e que apontam para a dualidade de Maria, a resignação de José, a impetuosidade do menino.
A graça manifestada passa praticamente à revelia da humanidade, tão distraída com seu dia-a-dia e sua cultura pop, e Maria, em seu descuido, termina cedendo aos caprichos da vaidade (o batom com o qual pinta seus lábios). O último take simboliza um buraco negro, (o espaço sideral estava muito presente neste filme) no close da boca de Myriem.

Na conclusão pessimista de Godard, a raça humana perdeu sua chance de transcendência.

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