sábado, 10 de junho de 2017

Herói

O monarca de uma dinastia secular da China recebe em seus reservados aposentos um certo "guerreiro sem nome" (Jet Li) que afirma ter ele próprio eliminado um casal de arrojados espadachins opositores do império, por cuja cabeça uma grande recompensa é oferecida.
Assim inicia-se uma das mais arrojadas sagas sobre honra, verdades, mentiras e o papel dúbio da realidade travestida de ficção (e da ficção travestida de realidade) que o cinema chinês já concebeu.
A história folclórica sobre o guerreiro que confrontou a astúcia do imperador Qin (Chen Daoming) com suas histórias cheias de lacunas a serem preenchidas já havia ganho as telas em outras ocasiões –inclusive no épico “O Imperador e O Assassino”, com Gong Li –mas, sua materialização mais surpreendente, em termos cinematográficos, é neste filme que representa, para o diretor Zhang Ymou, um ponto de virada na carreira: Seguindo os passos de Ang Lee, que experimentou aclamação mundial ao empregar sua experiência em drama num épico de artes marciais, com "O Tigre e O Dragão”.
Vislumbrando o mesmo caminho, Ymou que vinha de dois magníficos trabalhos de tintas intimistas e neo-realistas, “O Caminho Para Casa” e “Nenhum A Menos”, tratou de moldar sua própria visão pessoal de wuxia (como “O Tigre e O Dragão” era a visão pessoal de wuxia de Ang Lee), beneficiando-se inclusive do imensurável êxito daquela produção.
Um bom exemplo é que o astro Jet Li, inicialmente convidado por Ang Lee para seu filme recusou a proposta, mas depois do sucesso acachapante, aceitou de pronto o segundo convite para um filme destes mesmos moldes que lhe apareceu; e que veio a ser justamente para interpretar o “guerreiro sem nome” no filme de Ymou.
É ele quem senta-se na presença do imperador para narrar sua proeza, tendo eliminado os ferrenhos opositores à coroa, o casal Espada Quebrada e Neve Voadora (Tony Leung e Maggie Cheung, o mesmo casal protagonista de “Amor À Flor da Pele “, de Won Kar Wai, o quê evidencia o altíssimo luxo nas escolhas feitas por Zhang Ymou).
Contudo, enquanto acompanha o relato, o próprio rei, esperto, detecta contradições, o quê faz com que novas narrativas acabem se descortinando.
O “guerreiro sem nome” muda seu relato a medida que decide revelar os acontecimentos tal e qual teriam, de fato, acontecido, e o filme de Ymou assim se converte numa esplêndida variação do clássico “Rashomon”, do mestre Akira Kurosawa. Com o adendo do uso magnífico da cor: Conforme os relatos de “sem nome” se sucedem, e diferentes versões do mesmo acontecimento são narradas, as cores da encenação vão se alternando, indicativas do sentimento subliminar predominante –a austeridade do azul; a paixão e inconseqüência do vermelho; a consciência e a responsabilidade do verde; a serenidade do branco.
Ao fim, personagens e expectadores descobrem então que “Herói” é menos uma história sobre guerreiros e seus embates e mais sobre as armadilhas ambíguas da narrativa e, acima de tudo, sobre a prioridade maior e conciliadora da unificação.
Ang Lee certamente elevou vertiginosamente o nível dos filmes de artes marciais com "O Tigre e O Dragão" e, ao lograr feito parecido, Zhang Ymou pode não ter obtido, com este filme, uma obra-prima de igual excelência (pouco depois ele próprio obteve tal consagração com "Clã das Adagas Voadoras"), mas pelo menos orquestrou este épico político e romântico, notável por sua beleza visual e sua narrativa multifacetada a transformar, com seu estilo festivo e exuberante, as imbricações da ideologia em um acontecimento.

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