O monarca de uma dinastia secular da China
recebe em seus reservados aposentos um certo "guerreiro sem nome"
(Jet Li) que afirma ter ele próprio eliminado um casal de arrojados espadachins
opositores do império, por cuja cabeça uma grande recompensa é oferecida.
Assim inicia-se uma das mais arrojadas sagas
sobre honra, verdades, mentiras e o papel dúbio da realidade travestida de
ficção (e da ficção travestida de realidade) que o cinema chinês já concebeu.
A história folclórica sobre o guerreiro que
confrontou a astúcia do imperador Qin (Chen Daoming) com suas histórias cheias
de lacunas a serem preenchidas já havia ganho as telas em outras ocasiões
–inclusive no épico “O Imperador e O Assassino”, com Gong Li –mas, sua
materialização mais surpreendente, em termos cinematográficos, é neste filme
que representa, para o diretor Zhang Ymou, um ponto de virada na carreira:
Seguindo os passos de Ang Lee, que experimentou aclamação mundial ao empregar
sua experiência em drama num épico de artes marciais, com "O Tigre e O Dragão”.
Vislumbrando o mesmo caminho, Ymou que vinha de
dois magníficos trabalhos de tintas intimistas e neo-realistas, “O Caminho Para
Casa” e “Nenhum A Menos”, tratou de moldar sua própria visão pessoal de wuxia
(como “O Tigre e O Dragão” era a visão pessoal de wuxia de Ang Lee),
beneficiando-se inclusive do imensurável êxito daquela produção.
Um bom exemplo é que o astro Jet Li,
inicialmente convidado por Ang Lee para seu filme recusou a proposta, mas
depois do sucesso acachapante, aceitou de pronto o segundo convite para um
filme destes mesmos moldes que lhe apareceu; e que veio a ser justamente para
interpretar o “guerreiro sem nome” no filme de Ymou.
É ele quem senta-se na presença do imperador
para narrar sua proeza, tendo eliminado os ferrenhos opositores à coroa, o
casal Espada Quebrada e Neve Voadora (Tony Leung e Maggie Cheung, o mesmo casal
protagonista de “Amor À Flor da Pele “, de Won Kar Wai, o quê evidencia o
altíssimo luxo nas escolhas feitas por Zhang Ymou).
Contudo, enquanto acompanha o relato, o próprio
rei, esperto, detecta contradições, o quê faz com que novas narrativas acabem
se descortinando.
O “guerreiro sem nome” muda seu relato a medida
que decide revelar os acontecimentos tal e qual teriam, de fato, acontecido, e
o filme de Ymou assim se converte numa esplêndida variação do clássico
“Rashomon”, do mestre Akira Kurosawa. Com o adendo do uso magnífico da cor:
Conforme os relatos de “sem nome” se sucedem, e diferentes versões do mesmo
acontecimento são narradas, as cores da encenação vão se alternando, indicativas do
sentimento subliminar predominante –a austeridade do azul; a paixão e
inconseqüência do vermelho; a consciência e a responsabilidade do verde; a
serenidade do branco.
Ao fim, personagens e expectadores descobrem
então que “Herói” é menos uma história sobre guerreiros e seus embates e mais
sobre as armadilhas ambíguas da narrativa e, acima de tudo, sobre a prioridade
maior e conciliadora da unificação.
Ang Lee certamente elevou
vertiginosamente o nível dos filmes de artes marciais com "O Tigre e O
Dragão" e, ao lograr feito parecido, Zhang Ymou pode não ter obtido, com
este filme, uma obra-prima de igual excelência (pouco depois ele próprio obteve
tal consagração com "Clã das Adagas Voadoras"), mas pelo menos
orquestrou este épico político e romântico, notável por sua beleza visual e sua
narrativa multifacetada a transformar, com seu estilo festivo e exuberante, as
imbricações da ideologia em um acontecimento.
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