quarta-feira, 19 de julho de 2017

Fragmentado

A arte e a indústria assimilam as características mesmo transgressivas e inovadoras fazendo com que, a partir de um determinado ponto, eles soem como algo comercial. De certa forma foi o que aconteceu quando do lançamento, nos anos 1990 de “De Olhos Bem Fechados” –o diretor Stanley Kubrick, então há uma década sem filmar, entregou um filme nos seus moldes mas que, ao contrário de suas outras obras, não surpreendeu o público já acostumado com toda uma nova geração de filmes e realizadores que absorveram lições narrativas do próprio Kubrick (embora, “De Olhos Bem Fechados” seja, apesar de tudo, um tipo de obra muito especial, que cresce a cada revisão).
Foi também o que de certa maneira aconteceu com o diretor e roteirista M. Night Shyamalan, guardadas as devidas comparações (ainda que o vaidoso Shyamalan viesse a aceitar com satisfação uma comparação com Kubrick): Após o sucesso estarrecedor de “O Sexto Sentido” e de outros grandes filmes que se seguiram (“Corpo Fechado”, “Sinais” e “A Vila”), nos quais ele, acima de tudo, estabeleceu uma reputação de autor diferenciado e desigual –além de criar também uma receita bastante específica por meio da qual seus trabalhos eram concebidos, como a trama de natureza incomum, fortes elementos de suspense, e uma reviravolta mirabolante no seu final –Shyamalan viu sua magia, digamos, se apagar.
Depois do irregular “A Dama Na Água”, ele engatou tentativas fracassadas de reproduzir os mesmos filmes fascinantes de outrora –o tenebroso “Fim dos Tempos”, o claudicante e modorrento “O Último Mestre do Ar” (adaptado da série animada “Avatar”), o desinteressante “Depois da Terra” e, mais recentemente, o suspense realizado em found-footage “A Visita”.
O quê nos leva, enfim, a este “Fragmentado”, que apesar de seus lampejos de imperfeição, parece sinalizar um retorno de Shyamalan aos bons tempos em que era capaz de fazer ótimos filmes.
Como naqueles quatro primeiros e melhores trabalhos que ele realizou, “Fragmentado” é um delicioso conto de suspense que une sobrenatural, dramaticidade e absurdo numa roupagem que os reveste de algum realismo, tudo enfatizado a partir de um texto cheio de pormenores.
Em princípio, acompanhamos o desenrolar intrigante da trama pelos olhos da jovem e desajustada Casey (a maravilhosa Anya Taylor-Joy, de “A Bruxa”) que, ao lado de duas amigas mais, digamos, normais (Haley Lu Richardson e Jessica Sula) é raptada e levada ao que parece ser uma cela num porão por sociopata metódico que aparentemente responde pelo nome de Dennis (James McAvoy, impecável). Aparentemente... pois, ao longo do cárcere, as três garotas descobrirão que Dennis é somente uma das muitas identidades que habitam aquele corpo –há também Patrícia, um mulher de comportamento manipulador; Hedwig, um garoto impulsivo de nove anos; Barry, um rapaz com talento para ser estilista de moda; Orwell, um homem culto, porém inseguro e outras mais (embora essas sejam as que importam para a trama) num total de vinte e três personalidades completamente distintas (!).
Porém, uma outra está a caminho.
Todos os outros a mencionam como sendo “a Fera”, e é aí que entram as três garotas seqüestradas: Tudo indica que Casey e as outras servirão como uma espécie de presa para quando a mais terrível e perigosa de todas as identidades aflorar.
Tal e qual é comum em suas obras, as premissas de Shyamalan se estruturam em torno de referências inusitadas e claras –aqui, elas são o clássico “O Colecionador” (também ele sobre um cárcere e uma relação ambígua entre cativa e captor) e o conto de fadas “João e Maria” (no tom surreal do aprisionamento e no eufemismo, cada vez mais explícito, do abuso). Como comprovam alguns ocasionais flashbacks que interrompem a narrativa claustrofóbica, Casey tem um passado familiar traumático e, na cartilha quase comiserativa de Shyamalan, essa perturbação a torna mais apta a sobreviver naquela situação do que suas outras amigas –e, no desfecho de certa forma amargo, percebemos que escapar daquela enrascada representa, para ela, regressar àquele tormento.
Shyamalan, na busca algo disfarçada de uma obra pop, não escapa de alguns equívocos ginasianos: Além de uma continuidade notadamente defeituosa, a representação novelesca do TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade) oferecida por seu filme é uma de suas mais constantes críticas.
Nada disso, contudo, importa muito diante do fato de que este é o mais satisfatório filme que Shyamalan conseguiu entregar desde “A Vila”. Embora no final ele se isente de entregar mais uma das suas ‘reviravoltas-surpresa’ (embora isso seja, afinal, uma surpresa também...) ele oferece um vislumbre delicioso para uma continuação: Na forma da aparição inesperada e sensacional do protagonista de um de seus mais cultuados filmes.

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