segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Melvin e Howard

Eis um filme sensacional! Tão sensacional que é possível perceber, muito antes de sua consagração com “O Silêncio dos Inocentes”, que o diretor Jonathan Demme já era excelente (por sinal, “O Silêncio dos Inocentes” é tão antológico que não notamos o quanto trata-se de um corpo estranho na filmografia de Demme marcada muito mais por comédias pouco usuais como esta daqui).
Partindo de uma inusitada e nebulosa história real, o filme fala sobre o possível encontro entre o pobretão Melvin Dummar (James Le Mat) e o recluso e excêntrico milionário Howard Hugues (Jason Robards que, por uma brevíssima aparição já foi capaz de concorrer ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante), numa curiosa e pouco convencional estrutura de roteiro –em um filme comum, a trama giraria em torno das improváveis e potencialmente cômicas distinções entre personagens opostos, antagônicos até, mas no filme que Jonathan Demme se propôs a dirigir, o foco é, acima de tudo, a realidade: o personagem Howard Hugues, ainda que essencial e ressonante à premissa tem, quando muito, uns dez minutos de cena. Todo o resto da narrativa é dedicada à Melvin, o homem comum que se cruzou sem saber com uma das mais enigmáticas figuras do Século XX e, nesse breve instante, conseguiu gerar nele uma impressão tão marcante e genuína que foi lembrado por Hugues em seu testamento (!).
Até isso acontecer –surpreendentemente perto do fim, quando Demme já subverteu as expectativas de quem foi ver seu filme com base em alguma sinopse enganadora –toda a trama conduzida pelo roteirista Bo Goldman (merecido ganhador do Oscar) irá se concentrar nas condições sempre periclitantes da vida de Melvin, na árdua tentativa de equilibrar a crença inocente no sonho americano com a realidade frustrante que insiste em se expressar por todos os lados, na divertida relação com sua esposa Lynda (a maravilhosa Mary Steenburgeen fazendo valer plenamente seu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) que, apesar do amor e da cumplicidade, cede às desilusões da vida e à inconseqüência do próprio Melvin.
Chega a ser uma surpresa ao expectador descobrir que a trama abrange vários anos, envelhecendo os personagens, confrontando-os com aspectos irreversíveis da vida e mostrando que, acima de tudo, apesar do humor afiado extraído, sobretudo, de um elenco hábil, e da graça e galhofa que o diretor Demme consegue extrair, esta é uma história supostamente baseada em fatos reais –o testamento, supostamente escrito a mão por Hugues deixando sua fortuna à Dummar foi aceito por alguns tribunais americanos, porém, rejeitado por tantos outros, levando o caso à uma conclusão indefinida.
Demme, portanto, permite que a realidade acabe interferindo em sua obra, dando a ela textura, razão de ser e ramificações de inúmeras interpretações sociológicas mesmo que isso jamais de sobreponha à diversão: Esta bela e imperfeita trajetória de indivíduos pertencentes à classe média baixa americana (e cuja amarga conclusão é que para sempre à ela irão pertencer) é, sim, uma reafirmação do compromisso de seu diretor com a autenticidade da vida real, mas é também uma comédia brilhante.

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