Lançada no ano de 1995, e amparada numa trama
que imaginava as conseqüências futuristas da transição do ano 1999 para 2000, a
ficção científica “Estranhos Prazeres”, devido à sua curta validade, é um caso
de filme que rapidamente se tornou datado. O quê não envelheceu, contudo, foi a
condução hábil, convicta e objetiva e a noção prodigiosa de ritmo que sempre
marcaram os trabalhos da diretora Kathryn Bigelow –e que acabaram levando-a à
consagração junto ao Oscar de “Guerra Ao Terror” –aqui em colaboração com seu
ex-marido James Cameron, produtor e roteirista; e, de fato, a visão futurista
de Cameron, normalmente voltada para as preocupações essenciais e práticas da
sinergia entre o homem e a tecnologia (como em “Exterminador do Futuro”) surge
aqui dando contexto, minúcia e circunstância à narrativa.
Ela gira em torno de Lenny Nero (Ralph Fiennes,
num papel mais afável que o de costume), ex-policial que trabalha em um novo
nicho de mercado negro: A comercialização de lembranças –os usuários pagam para
experimentarem (no caso, verem, sentirem e vivenciarem) um momento específico
da vida de outra pessoa (seja ela uma transa, uma tentativa de assalto ou
qualquer situação que envolva emoção e adrenalina) da mesma forma que
consumiriam alguma droga ou entorpecente.
A memória alheia é, portanto, o vício do novo
século.
Como o personagem pária e marginal que é, Lenny
está até o pescoço de problemas: Vive um romance mal resolvido com a cantora
Faith (Juliette Lewis, de certa forma, a femme fatalle deste noir pós-moderno)
que largou dele e se envolveu com o perigoso gangster da indústria musical
Philo (Michael Wincott, um vilão padrão); vê sua melhor amiga Mace (a charmosa
Ângela Bassett) sempre às turras com suas encrencas –ainda que, lá no fundo,
ela nutra por ele algum sentimento –e, para piorar, lhe pede ajuda uma
prostituta (Brigitte Bako) cujas lembranças devidamente gravadas contêm
informações que podem deflagrar um caos em Los Angeles. Tudo isso se passando
durante os dois últimos dias de 1999, quando as comemorações da chegada do novo
milênio tornam a cidade ainda mais frenética peculiar do que normalmente ela já
é.
São, então, duas mentes de primazia genial que
convergem na realização deste trabalho um tanto quanto esquecido dos anos 1990,
mas, igualmente, um de seus exemplares mais notáveis: A visão cheia de
capacidade e de austeridade cinematográfica de Kathryn Bigelow –e a maneira com
que ela controla as facetas distintas de ação, film noir investigativo, ficção
científica, elementos raciais, alegoria política e múltiplas tramas e múltiplos
personagens exige mesmo uma direção de prodigiosa mão firme –e o senso de
observação impecável de James Cameron, atento às nuances fragmentadas da
analogia e intrinsecamente conhecedor da estrutura do cinema enquanto
entretenimento. “Estranhos Prazeres”, na trama que vai se descortinando em seu
terço final, reflete mazelas muito reais da sociedade americana naqueles anos
1990, em especial, o chocante vídeo do espancamento de Rodney King que
chacoalhou a Costa Oeste em revoltas raciais –a sub-trama sobre a morte do
rapper Jeriko One (Glenn Plummer, de “Velocidade Máxima”) surge esporádica na
primeira parte do filme, para então revelar-se crucial em um dado momento,
quando o roteiro de Cameron e a direção de Bigelow avaliam a política embutida
nas justificativas que levam ao caos, justapõe a responsabilidade e o dever da
polícia em contraponto aos revezes sórdidos da corrupção e da impunidade e
ainda arrematam magnificamente o protagonismo de Ângela Bassett.
Um grande filme
estranhamente anacrônico, politicamente válido, maravilhosamente bem concebido,
e digno de urgentes revisões.
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