terça-feira, 26 de setembro de 2017

Estranhos Prazeres

Lançada no ano de 1995, e amparada numa trama que imaginava as conseqüências futuristas da transição do ano 1999 para 2000, a ficção científica “Estranhos Prazeres”, devido à sua curta validade, é um caso de filme que rapidamente se tornou datado. O quê não envelheceu, contudo, foi a condução hábil, convicta e objetiva e a noção prodigiosa de ritmo que sempre marcaram os trabalhos da diretora Kathryn Bigelow –e que acabaram levando-a à consagração junto ao Oscar de “Guerra Ao Terror” –aqui em colaboração com seu ex-marido James Cameron, produtor e roteirista; e, de fato, a visão futurista de Cameron, normalmente voltada para as preocupações essenciais e práticas da sinergia entre o homem e a tecnologia (como em “Exterminador do Futuro”) surge aqui dando contexto, minúcia e circunstância à narrativa.
Ela gira em torno de Lenny Nero (Ralph Fiennes, num papel mais afável que o de costume), ex-policial que trabalha em um novo nicho de mercado negro: A comercialização de lembranças –os usuários pagam para experimentarem (no caso, verem, sentirem e vivenciarem) um momento específico da vida de outra pessoa (seja ela uma transa, uma tentativa de assalto ou qualquer situação que envolva emoção e adrenalina) da mesma forma que consumiriam alguma droga ou entorpecente.
A memória alheia é, portanto, o vício do novo século.
Como o personagem pária e marginal que é, Lenny está até o pescoço de problemas: Vive um romance mal resolvido com a cantora Faith (Juliette Lewis, de certa forma, a femme fatalle deste noir pós-moderno) que largou dele e se envolveu com o perigoso gangster da indústria musical Philo (Michael Wincott, um vilão padrão); vê sua melhor amiga Mace (a charmosa Ângela Bassett) sempre às turras com suas encrencas –ainda que, lá no fundo, ela nutra por ele algum sentimento –e, para piorar, lhe pede ajuda uma prostituta (Brigitte Bako) cujas lembranças devidamente gravadas contêm informações que podem deflagrar um caos em Los Angeles. Tudo isso se passando durante os dois últimos dias de 1999, quando as comemorações da chegada do novo milênio tornam a cidade ainda mais frenética peculiar do que normalmente ela já é.
São, então, duas mentes de primazia genial que convergem na realização deste trabalho um tanto quanto esquecido dos anos 1990, mas, igualmente, um de seus exemplares mais notáveis: A visão cheia de capacidade e de austeridade cinematográfica de Kathryn Bigelow –e a maneira com que ela controla as facetas distintas de ação, film noir investigativo, ficção científica, elementos raciais, alegoria política e múltiplas tramas e múltiplos personagens exige mesmo uma direção de prodigiosa mão firme –e o senso de observação impecável de James Cameron, atento às nuances fragmentadas da analogia e intrinsecamente conhecedor da estrutura do cinema enquanto entretenimento. “Estranhos Prazeres”, na trama que vai se descortinando em seu terço final, reflete mazelas muito reais da sociedade americana naqueles anos 1990, em especial, o chocante vídeo do espancamento de Rodney King que chacoalhou a Costa Oeste em revoltas raciais –a sub-trama sobre a morte do rapper Jeriko One (Glenn Plummer, de “Velocidade Máxima”) surge esporádica na primeira parte do filme, para então revelar-se crucial em um dado momento, quando o roteiro de Cameron e a direção de Bigelow avaliam a política embutida nas justificativas que levam ao caos, justapõe a responsabilidade e o dever da polícia em contraponto aos revezes sórdidos da corrupção e da impunidade e ainda arrematam magnificamente o protagonismo de Ângela Bassett.
Um grande filme estranhamente anacrônico, politicamente válido, maravilhosamente bem concebido, e digno de urgentes revisões.

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