O Japão, sobretudo, a sua população, já
experimentava havia tempos as conseqüências da guerra –como é perfeitamente
registrado no árduo primeiro ato de filme onde Gen e seu irmão Shinji lutam
para obter comida para o pai, marceneiro desempregado, a mãe grávida e a irmã
mais velha –mas, é na cena em que a bomba atômica é, por fim, lançada na cidade
de Hiroshima que as repercussões nocivas da Segunda Guerra Mundial sobre a vida
de pessoas normais atinge seu ápice mais nocivo.
Pontuada por algumas das mais atrozes cenas já
realizadas em um desenho animado, a cena do ataque nuclear flagra a devastação
implacável e o horror imensurável a que foram expostos os cidadãos comuns
daquela cidade, naquele dia. Trata-se do gatilho que de fato impulsionará a
trama de sofrimento profundo e singular que se desenrola em “Gen Pés Descalços”,
de Mori Masaki, adaptado do mangá de Keiji Nakasawa, baseado por sua vez nas
memórias do próprio realizador. É também uma seqüência arrebatadora em seu
detalhamento, na força convicta que brota de suas imagens e no despojamento
consciente do flagelo terrível que registra com elas: Em minutos que logo se
revelam intermináveis, testemunhamos a degeneração instantânea promovida por
fogo e radiação de seres humanos ainda vivos, convertidos em criaturas
cauterizadas, dissolvidas em sua própria carne. Masaki é categórico em sugerir
que aqueles que morreram tiveram mais sorte do que os que permaneceram vivos:
Em seguida à apavorante onda de fogo e destruição que varre o Japão, vêem os
males graduais e silenciosos da radiação, na forma de degenerações progressivas
e doenças imprevisíveis, além da situação assombrosamente periclitante por si
só –não há uma única casa, ou hospital, ou qualquer coisa, que reste em pé por
quilômetros em qualquer direção. Não há comida, não há remédio, nem tampouco
previsão de tratamento para as legiões de feridos e necessitados que se
desesperam entre os escombros.
Da família de Gen só restaram vivos ele e sua
mãe, que logo dá à luz uma menininha (num momento que soa quase miraculoso em
meio à tanta dor), mas engana-se o expectador que deduzir que o pior já passou
–a odisséia de sofrimento inimaginável de Gen (e, por extensão, de todo o povo
japonês) está apenas começando, e na narrativa contundente e estoicamente
comprometida com a amostragem da realidade que Masaki abraça não há personagem
terno ou querido o suficiente que não tenha, no filme, um destino dos mais
cruéis reservados si.
Ao moldar tal experiência humana numa animação (quando todos os rótulos e convenções mandariam que fosse num filme
live-action), Masaki e Nakasawa fazem com que a memória aterradora da tragédia
nuclear seja transformada assim numa obra cinematográfica desprovida de cinismo
e de segundas intenções.
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