terça-feira, 26 de setembro de 2017

Gen Pés Descalços

O Japão, sobretudo, a sua população, já experimentava havia tempos as conseqüências da guerra –como é perfeitamente registrado no árduo primeiro ato de filme onde Gen e seu irmão Shinji lutam para obter comida para o pai, marceneiro desempregado, a mãe grávida e a irmã mais velha –mas, é na cena em que a bomba atômica é, por fim, lançada na cidade de Hiroshima que as repercussões nocivas da Segunda Guerra Mundial sobre a vida de pessoas normais atinge seu ápice mais nocivo.
Pontuada por algumas das mais atrozes cenas já realizadas em um desenho animado, a cena do ataque nuclear flagra a devastação implacável e o horror imensurável a que foram expostos os cidadãos comuns daquela cidade, naquele dia. Trata-se do gatilho que de fato impulsionará a trama de sofrimento profundo e singular que se desenrola em “Gen Pés Descalços”, de Mori Masaki, adaptado do mangá de Keiji Nakasawa, baseado por sua vez nas memórias do próprio realizador. É também uma seqüência arrebatadora em seu detalhamento, na força convicta que brota de suas imagens e no despojamento consciente do flagelo terrível que registra com elas: Em minutos que logo se revelam intermináveis, testemunhamos a degeneração instantânea promovida por fogo e radiação de seres humanos ainda vivos, convertidos em criaturas cauterizadas, dissolvidas em sua própria carne. Masaki é categórico em sugerir que aqueles que morreram tiveram mais sorte do que os que permaneceram vivos: Em seguida à apavorante onda de fogo e destruição que varre o Japão, vêem os males graduais e silenciosos da radiação, na forma de degenerações progressivas e doenças imprevisíveis, além da situação assombrosamente periclitante por si só –não há uma única casa, ou hospital, ou qualquer coisa, que reste em pé por quilômetros em qualquer direção. Não há comida, não há remédio, nem tampouco previsão de tratamento para as legiões de feridos e necessitados que se desesperam entre os escombros.
Da família de Gen só restaram vivos ele e sua mãe, que logo dá à luz uma menininha (num momento que soa quase miraculoso em meio à tanta dor), mas engana-se o expectador que deduzir que o pior já passou –a odisséia de sofrimento inimaginável de Gen (e, por extensão, de todo o povo japonês) está apenas começando, e na narrativa contundente e estoicamente comprometida com a amostragem da realidade que Masaki abraça não há personagem terno ou querido o suficiente que não tenha, no filme, um destino dos mais cruéis reservados si.

Ao moldar tal experiência humana numa animação (quando todos os rótulos e convenções mandariam que fosse num filme live-action), Masaki e Nakasawa fazem com que a memória aterradora da tragédia nuclear seja transformada assim numa obra cinematográfica desprovida de cinismo e de segundas intenções.

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