O filme do diretor Bertrand Blier nada mais é
do que uma transgressão, das muitas que jovens realizadores com muito a dizer e
amplo terreno para ousar perpetraram nos anos 1970.
Em sua simplicidade narrativa, segue dois rapazes
arruaceiros sem eira nem beira, Jean Claude (Gerard Depardieu, magnífico) e
Pierrot (Patrick Dwaere, de “Beau-Père”, também de Blier), que não demonstram
ter escrúpulos, propósito ou ocupação. São libidinosos, abusados e atrevidos.
E, por pertencerem à uma comédia de Bertrand Blier, são também beneficiados
pelo modo quase indiferente com que o mundo à sua volta recebe suas
manifestações de transgressão.
O filme caminha assim no formato de uma
sucessão de pequenos episódios que registram sua libertinagem, sua
permissividade e audácia, e são em grande medida definidos, não pelos
personagens principais que se mantêm constantes em sua infâmia, mas pelas
personagens com quem se cruzam, e que acrescentam presenças notáveis como a de
Jeanne Moreau (como uma ex-presidiária recém-saída da cadeia cuja presença
inspira neles uma inesperada devoção e os conduz ao desenlace mais trágico do
filme), Isabelle Huppert (como uma jovem rebelde que aparece já perto do
desfecho –mas, cuja personagem havia sido mencionada no início –e que
representa uma das muitas pontas soltas que se unem) e, com muito mais presença
e importância na trama, Miou Miou (uma bela e frígida cabeleireira que os dois
conhecem logo no começo, após o roubo de um carro, e que a partir daí vira uma
espécie de parceira sexual partilhada).
Numa das cenas, os dois encurralam, no vagão
vazio de um trem, uma jovem mãe que amamenta seu bebê. Ela não se opõe tanto
quanto poderia se esperar quando eles –de modo um bocado ameaçador –lhe pedem
para sugar seus seios (!). Ela cede e, no absurdo desconcertante da cena que se
segue –onde é preciso destacar a grande beleza da atriz Brigitte Fossey, assim
como são belas todas as atrizes deste filme –Blier mostra o êxtase sexual dela
própria ao encontrar o marido esperando-a na estação.
Nesse, como em vários outros momentos que se
seguirão, Blier, portanto, sublinha menos a natureza abusiva do ato e mais seu
objetivo de excitação: Tal mundo no qual se passa “Corações Loucos” não
pertence ao mundo real –onde a mulher chamaria um policial para denunciar tais
abusos –mas, sim, num outro, onde estão em perspectivas as buscas por prazer
acima de tudo e a intenção de chocar público e crítica com o filme que de tal
esforço há de resultar; e, de fato, “Corações Loucos” é lembrado assim como um
anárquico manifesto do cinema francês naqueles tempos (década de 1970) em que o
cinema autoral vinha recebendo ressonantes abalos sísmicos em todos os cantos
do mundo com trabalhos que testavam o limite da aceitação por meio de ousadas
incursões no sexo.
E o cinema de Bertrand Blier sempre foi avesso
ao conformismo, à adequação às convenções. No comportamento amoral dos
protagonistas que registra –e a premissa de seu filme pode mesmo ser reduzida a
isto –ele expõe a pertinência com que se deve questionar patrulhas ideológicas
e rótulos institucionais assim como realiza também uma síntese da mentalidade
juvenil daqueles tempos em que, após os politizados anos 1960, as novas
gerações eram confrontadas com uma nociva perspectiva de alienação; e cabeça
vazia, como bem se diz, é oficina do diabo.
O final parece sugerir um
fim acidental para a vida dos protagonistas –cuja cena o filme se encerra antes
de mostrar –já que, ao que parece, eles tornam a roubar o mesmo carro do início
(que eles sabotaram antes de devolver ao dono para que sofresse um acidente),
mais uma das muitas ironias que Bertrand Blier destila aqui.
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