sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A Tempestade

William Shakespeare não era necessariamente uma novidade na filmografia de Julie Taymor (de “Across The Universe”) –muito antes ela havia se aventurado numa versão musical e lisérgica de “Titus”, com Anthony Hopkins –isso explica, talvez, o fato dela ter abordado a junção de ambições, revanches, traições e magia que compõem a trama passada numa ilha mediterrânea com um revisionismo tal que –sinal dos tempos –mudou o sexo de seu protagonista.
Se antes o personagem principal Prospero era homem (e chegou a ser interpretado por John Gielgud e Peter Fonda em outras versões), agora é convertido numa mulher, Prospera (que ganha assim a excelência de Helen Mirren).
Outrora a Duquesa de Milão, Prospera foi exilada numa ilha do mediterrâneo devido às maquinações conspiratórias de seu irmão, Antonio (Chris Cooper) e de outros membros da corte de Nápoles, como o próprio rei (David Strathairn) e seu irmão invejoso (Alan Cumming).
Ao mover sua vingança munida de forças sobrenaturais, Prospera se revela então um reflexo do próprio Shakespeare: Abandonada na ilha, junto de seus livros e da própria filha, Miranda (Felicity Jones, linda), ela desenvolve poderes com os quais controla o destino dos incautos viajantes –tal e qual o próprio escritor o faz com os personagens à disposição de sua trama.
Auxiliada pelo subserviente espírito Ariel (Ben Wisham), Prospera conjura uma tempestade com a qual consegue fazer naufragar na ilha um navio trazendo todos os seus antagonistas –e deles faz gato-sapato.
Como em “Titus”, a diretora Taymor imprime um senso visual colorido e surreal à trama, remetendo a uma artificialidade dos palcos de teatro potencializada com efeitos especiais de última geração e trucagens de câmera que buscam romper com qualquer predisposição tediosa do enredo. Nesse sentido, Julie Taymor, apesar de uma ou outra opção estética de gosto discutível, revela um entendimento de Shakespeare muito mais apurado do que, por exemplo, o jovem diretor Justin Kurzel e sua equivocada versão de “MacBeth”: Ela compreende que, vertidas para cinema, as tragédias de Shakespeare devem agregar em seu material as ferramentas que o cinema tem –o esplendor visual, a montagem inquieta e instigante, os atores capazes de hipnotizar a câmera (aqui não apenas estão as maravilhosas Helen Mirren e Felicity Jones, como também os incontroláveis Alfred Molina e Russel Brand).
Além disso, existem também as cenas de Ariel convertido aqui num ser etéreo e abstrato, na boca do qual Taymor deposita versos declamados em versões musicadas, e o monstruoso Caliban (Djimon Houson, de “A Ilha” e “Gladiador”) envolto numa maquiagem pesada e desconcertante.
Ainda que mais amena e não tão propensa ao experimentalismo e à transgressão, a versão de Julie Taymor bebe um pouco da fonte de Peter Greenaway e sua versão ultra-estilizada, “A Última Tempestade”, em suas singulares peripécias visuais e sua profusão de cores e imagens exuberantes a emoldurar o trabalho de um elenco empenhado e apaixonado.
Ótimo cinema a ser usufruído, entretanto, por públicos específicos.

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