sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Central do Brasil

“My english is not good. But my soul is better.”
Não, esta frase não está em nenhuma cena de “Central do Brasil”, na verdade, ela foi dita pela atriz Fernanda Montenegro no discurso de agradecimento ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro recebido pela produção no ano 2000. Na opinião de muitos, sua demonstração de humanismo e espirituosidade nessa ocasião representou um passo e tanto para a indicação ao Oscar de Melhor Atriz que ela obteve, até hoje, a única para uma intérprete brasileira.
Dirigido por Walter Salles (cuja carreira, apesar de tudo, demonstrou uma irregular oscilação de qualidade ao longo dos anos), “Central do Brasil” representou um avanço considerável no cinema da Retomada que surgiu no nosso país durante a década de 1990. Hoje, talvez até mais do que na época, é possível perceber que, na esteira dos indicados ao Oscar anteriores –também eles representativos da Retomada e da gradual descoberta de nosso valor e integridade artística –“Central...” se mostra de uma execução infinitamente mais arrojada do que “O Quatrilho”, de 1995, e mais equilibrado, marcante e austero do que “O Quê É Isso, Companheiro?”, de 1998 (e, por sinal, estrelado por Fernanda Torres, a filha de Fernanda Montenegro).
Fazendo imediatamente jus ao seu título, o filme se inicia na Estação Central do Rio de Janeiro, lugar abarrotado de gente indo e vindo de todos os cantos do Brasil. E a câmera de Walter Salles exercita seu cinema de autor com olhar para o regional (um reflexo involuntário que surgiu com o cinema da Retomada) capturando a variedade –inclusive verbal –dessas pessoas tão diversificadas. Pretexto não lhe falta: A protagonista Dora (vivida com toda a bagagem sentimental e profissional que os anos de TV e teatro proporcionaram à magnífica Fernanda Montenegro) é uma ex-professora que vive de escrever cartas para o povo (não raro, analfabetos) que por lá passa. Pessoas dos mais diversos cantos lhes relatam reminiscências, recados e mensagens para entes queridos que ela redige e cobra com a promessa de, mais tarde, postar no correio.
Em sua amargura de classe média suburbana, Dora acumula as cartas em sua casa sem incomodar-se em enviá-las. Sua rotina segue normal até o dia em que uma mulher lhe dita uma carta a ser enviada para seu suposto marido, morador do sertão pernambucano. A mulher morre pouco depois, atropelada no metrô carioca. O garotinho que ela trazia consigo, Josué (o expressivo Vinícius de Oliveira) fica órfão, sozinho e perdido.
Nos dias que se seguem apenas Dora, apesar das rusgas, parece realmente se importar com o garoto.
Ela o leva para casa, e depois, com a ajuda da vizinha Irene (e um filme que reúne Fernanda e Marília Pêra em cena já é, só por isso, digno de atenção) decide pegar a estrada num dos ônibus interestaduais rumo à Bahia e Pernambuco e tentar encontrar o restante da família de Josué.
A peregrinação de Dora e Josué estrada afora –o quê coloca este filme já na categoria de ‘road-movies’ tal e qual outros dois trabalhos de Salles, os posteriores “Diários de Motocicleta” e “Na Estrada” –é uma oportunidade para a narrativa registrar com imediatismo e primeira mão um Brasil autêntico e vívido com suas romarias de atmosfera quase mística, seus pitorescos (e muitas vezes paupérrimos) botecos de beira de estrada, e toda sorte de características que nosso país conserva e que dele parecem fazer algo único –para o bem e para o mal.

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