segunda-feira, 19 de março de 2018

Medeia

Já ao fim da década de 1980, ainda havia algo de pop em Lars Von Trier. Embora trilhasse fielmente o caminho de intransigência e contestação que o levou ao Movimento do Dogma 95 na década de 1990 e depois às obras controversas como “Dogville” e “Ninfomaníaca”, o dinamarquês ainda parecia experimentar um cinema menos hermético. Prova disso é a minissérie de terror “O Reino”, lançada em meio aos anos 1990 nos cinemas com um corte mais enxuto.
É esse Lars Von Trier, com um pé no cinema de arte corrosivo que viria a abraçar e outro na experimentação declarada de arquétipos do cinema comercial que encontramos em “Medeia”.
O filme já anuncia escancaradamente tratar-se da execução de um roteiro não filmado do grande Carl T. Dreyer, entretanto, ao longo do filme nota-se pontualmente elementos que Dreyer jamais adotaria em seu trabalho –e que remetem imediatamente à personalidade do próprio Lars Von Trier.
A idéia de Carl Dreyer talvez esteja na essência de “Medeia” e na construção de sua estrutura. Concebido a partir da famosa tragédia de Eurípides –a qual ganhou também em 1969 uma versão pelas mãos apropriadas de Píer Paolo Passolini –“Medeia” narra uma trama sobre profundezas insondáveis de rancor.
A personagem-título é uma feiticeira (vivida pela bela Kirsten Olesen) deixada de lado pelo amado Jasão (Udo Kier, cuja expressão angular cai bem ao personagem).
Quando o filme começa, Medeia absorve, em meio às águas, as aflições de seu infortúnio. Como nos será gradativamente mostrado, ela amou o ambicioso Jasão, com quem teve dois filhos pequenos e partilhou os sonhos de grandeza na busca pelo Velo de Ouro. Contudo, se a feitiçaria de Medeia foi fundamental à ascensão de Jasão, ele logo a descartou quando sua disponibilidade se fez necessária: Um rei oferece à Jasão a mão em casamento de sua jovem filha Glauce (Ludmilla Glinska, uma beldade)
Desejoso da jovem e do poder, Jasão não pestaneja nem mesmo quando descobre que para desposá-la, ela exige que ele exile Medeia e seus filhos.
A feiticeira, porém, já tem lá seus planos de como castigar o homem desleal; e um fim dos mais cruéis aguarda por Jasão –não sua morte, ou sua derrocada (embora, ela também venha), mas sim um artifício através do qual Medeia fará com que viver, para Jasão, acabe sendo ainda mais doloroso do que morrer.
Como tornaria a fazer em “Europa” –um trabalho seu daqueles tempos hoje não tão conhecido –Lars Von Trier compõe em “Medeia” um apanhado desigual de imagens simultâneas que se sobrepõem, às vezes, com significados enigmáticos: Ele utiliza filtros de câmera com insuspeito radicalismo, cenários de fundo que se transformam numa espécie de tela na qual outras cenas surreais são projetadas e uma granulação no efeito visual que chega a ser quase opressora produzindo imagens poderosas e impactantes.
Mas a questão estética é só metade da singularidade de “Medeia”: Muito já se falou do papel da mulher no cinema de Lars Von Trier. Uns apontam suas tramas –invariavelmente construídas em torno da premissa onde uma mulher em penitência se esvai física e psicologicamente em prol de sua crença –como um tratado cafajeste da misoginia. Outros observam o valor artístico implícito no registro da cruel condição humana e do feminino etéreo em conflito com o masculino mundano.
“Medeia” é mais uma ilha no arquipélago que é sua filmografia. Somente Von Trier teria mesmo o despudor, a identificação e a iniciativa necessária para se lançar neste conto lúgubre e perverso sobre uma mulher e seu desejo de vingança levado a conseqüências tão arduamente convictas que nem mesmo o extremo absoluto de sua própria dor a faz desistir de infligir também essa dor naquele de quem deseja se vingar.

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