Já ao fim da década de 1980, ainda havia algo
de pop em Lars Von Trier. Embora trilhasse fielmente o caminho de
intransigência e contestação que o levou ao Movimento do Dogma 95 na década de
1990 e depois às obras controversas como “Dogville” e “Ninfomaníaca”, o
dinamarquês ainda parecia experimentar um cinema menos hermético. Prova disso é
a minissérie de terror “O Reino”, lançada em meio aos anos 1990 nos cinemas com
um corte mais enxuto.
É esse Lars Von Trier, com um pé no cinema de
arte corrosivo que viria a abraçar e outro na experimentação declarada de
arquétipos do cinema comercial que encontramos em “Medeia”.
O filme já anuncia escancaradamente tratar-se
da execução de um roteiro não filmado do grande Carl T. Dreyer, entretanto, ao
longo do filme nota-se pontualmente elementos que Dreyer jamais adotaria em seu
trabalho –e que remetem imediatamente à personalidade do próprio Lars Von
Trier.
A idéia de Carl Dreyer talvez esteja na
essência de “Medeia” e na construção de sua estrutura. Concebido a partir da
famosa tragédia de Eurípides –a qual ganhou também em 1969 uma versão pelas
mãos apropriadas de Píer Paolo Passolini –“Medeia” narra uma trama sobre
profundezas insondáveis de rancor.
A personagem-título é uma feiticeira (vivida
pela bela Kirsten Olesen) deixada de lado pelo amado Jasão (Udo Kier, cuja
expressão angular cai bem ao personagem).
Quando o filme começa, Medeia absorve, em meio
às águas, as aflições de seu infortúnio. Como nos será gradativamente mostrado,
ela amou o ambicioso Jasão, com quem teve dois filhos pequenos e partilhou os
sonhos de grandeza na busca pelo Velo de Ouro. Contudo, se a feitiçaria de
Medeia foi fundamental à ascensão de Jasão, ele logo a descartou quando sua
disponibilidade se fez necessária: Um rei oferece à Jasão a mão em casamento de
sua jovem filha Glauce (Ludmilla Glinska, uma beldade)
Desejoso da jovem e do poder, Jasão não
pestaneja nem mesmo quando descobre que para desposá-la, ela exige que ele
exile Medeia e seus filhos.
A feiticeira, porém, já tem lá seus planos de
como castigar o homem desleal; e um fim dos mais cruéis aguarda por Jasão –não
sua morte, ou sua derrocada (embora, ela também venha), mas sim um artifício
através do qual Medeia fará com que viver, para Jasão, acabe sendo ainda mais
doloroso do que morrer.
Como tornaria a fazer em “Europa” –um trabalho
seu daqueles tempos hoje não tão conhecido –Lars Von Trier compõe em “Medeia”
um apanhado desigual de imagens simultâneas que se sobrepõem, às vezes, com
significados enigmáticos: Ele utiliza filtros de câmera com insuspeito
radicalismo, cenários de fundo que se transformam numa espécie de tela na qual
outras cenas surreais são projetadas e uma granulação no efeito visual que
chega a ser quase opressora produzindo imagens poderosas e impactantes.
Mas a questão estética é só metade da
singularidade de “Medeia”: Muito já se falou do papel da mulher no cinema de
Lars Von Trier. Uns apontam suas tramas –invariavelmente construídas em torno
da premissa onde uma mulher em penitência se esvai física e psicologicamente em
prol de sua crença –como um tratado cafajeste da misoginia. Outros observam o
valor artístico implícito no registro da cruel condição humana e do feminino
etéreo em conflito com o masculino mundano.
“Medeia” é mais uma ilha no
arquipélago que é sua filmografia. Somente Von Trier teria mesmo o despudor, a
identificação e a iniciativa necessária para se lançar neste conto lúgubre e
perverso sobre uma mulher e seu desejo de vingança levado a conseqüências tão
arduamente convictas que nem mesmo o extremo absoluto de sua própria dor a faz
desistir de infligir também essa dor naquele de quem deseja se vingar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário