terça-feira, 19 de março de 2019

Beije-Me, Idiota

Um conto vibrante e politicamente incorreto sobre as incongruências e idiossincrasias do matrimônio, do ciúme e do adultério, “Beije-Me, Idiota” estabelece, na filmografia de Billy Wilder, uma curiosa espécie de diálogo com “O Pecado Mora Ao Lado”, assim como a personagem de Kim Novak se relaciona com a de Marilyn Monroe no papel e na função narrativa que ela ocupa. E tão saboroso e satisfatório é o resultado disso tudo que é de impressionar que este trabalho não seja tão conhecido quanto outras aclamadas obras dele.
Há pouquíssima vontade de disfarçar que o personagem vivido por Dean Martin, o beberrão e mulherengo cantor Dino Latino, é ele próprio –na verdade, uma versão carregada nas peculiaridades caricatas do próprio Martin; até mesmo o Rat Pack, a turma formada por ele, Frank Sinatra, Bing Crosby e outros é mencionada.
Assim, com essa sacada quase metalinguística, o filme se inicia com a agenda tumultuada de Dino precisando pular de um palco (e de um quarto de rabo de saia) para o outro.
Numa viagem interestadual de carro, o famoso cantor é obrigado a fazer um desvio passando pela pequenina cidade de Clímax, onde tem seu caminho cruzado com o professor de música Orville Spooner (Ray Walston, substituindo Peter Sellers, a escolha inicial para o papel) e o frentista Barney Millsap (Cliff Osmond).
Orville, tão desengonçado e ordinário quanto Tom Ewell em “O Pecado Mora Ao Lado”, é casado com a meiga Zelda (a bela Felicia Farr), e tão consciente ele é da improbabilidade de seu matrimônio que seu ciúme o leva a procurar indícios de adultério em cada gesto da esposa –ainda que Zelda, um anjo em pessoa, seja sempre leal e sincera.
Ao lado de Barney, Orville compõe várias músicas, por meio das quais sonham em ganhar fama e fortuna, desvencilhando-se assim da mediocridade local –e amargam, portanto, a frustração da realidade não mostrar-se animadora.
Isso muda quando Dino aparece no posto de gasolina de Barney: Uma celebridade que, se demonstrar interesse o bastante em suas composições, pode gravá-las e cantá-las mundo afora, tornando-os enfim famosos.
Mas, para isso, Dino tem de ficar um tempo em Clímax; e, para tanto, Barney dá aquele jeito no cabo do combustível (!).
E além do mais, é necessário jogar-lhe uma isca adequadamente atrativa; e sabendo de seu histórico mulherengo os dois não tardam a elaborar um plano tumultuado –levar o cantor para a casa de Orville onde, em meio aos inevitáveis flertes com a esposa dele, eles terão tempo de sobra para apresentar-lhe suas músicas.
É claro, porém, que Orville não admitiria tal situação acontecer-lhe com a esposa –pelo menos, não com a esposa de verdade! Entre aí, então, o plano de Barney: Mandar Zelda para passar uma noite na casa da mãe e, em lugar dela, colocar uma das moçoilas (devidamente remunerada) da boate local, o ‘Belly Button’, para oferecer à Dino a chance de uma irrecusável aventura extraconjugal.
A escolhida vem a ser a apetitosa e insinuante Polly (e aí que finalmente Kim Novak, deliciosa como sempre, entra na trama) que, sem muito entusiasmo em ter de agradar ao famoso, começa a incorporar de tal forma o papel de esposa de Orville que a ele se apega (!).
Assim, tal e qual ocorre em “O Pecado Mora Ao Lado”, a condução de “Beije-Me, Idiota” se dá ao longo de uma noite de farsa, onde aparências são divertidamente mantidas para que um plano (que se complica cada vez mais) tenha progresso. Por seu número um pouco maior de interessantes personagens, contudo, “Beije-Me, Idiota” vai um pouco mais além em sua audácia: Aos poucos, o roteiro inteligentíssimo orquestra uma troca espantosa e não destituída de certo cinismo entre as identidades de Zelda e Polly –a garota de programa que vira esposa e a esposa que vira garota de programa (!).
No início divertidamente farsesco (e na decisão admirável de construir um filme que não se acomodasse apenas nisso) conduzido a um quiproquó bastante inesperado –e revelador das capacidades maiúsculas de Wilder como diretor e roteirista –o filme é um exemplar e tanto da compreensão espetacular que ele tinha da fluidez existencial das relações, e da capacidade inata em trabalha-las numa narrativa ágil e cinematográfica.
Suas ousadias, é presumível, não escaparam das inevitáveis retaliações morais da época: Especialmente seu arremate, perto do desfecho, é de uma precisão narrativa que só se iguala à indignação que suscitou na Legião Católica da Decência, responsável por muito da obscuridade que tornou este trabalho maravilhoso pouco lembrado nos dias hoje.
Um inconformismo disfarçado de gracejo que fazia um bem danado ao cinema hollywoodiano dos anos 1960.

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