Um conto vibrante e politicamente incorreto
sobre as incongruências e idiossincrasias do matrimônio, do ciúme e do
adultério, “Beije-Me, Idiota” estabelece, na filmografia de Billy Wilder, uma
curiosa espécie de diálogo com “O Pecado Mora Ao Lado”, assim como a personagem
de Kim Novak se relaciona com a de Marilyn Monroe no papel e na função
narrativa que ela ocupa. E tão saboroso e satisfatório é o resultado disso tudo
que é de impressionar que este trabalho não seja tão conhecido quanto outras
aclamadas obras dele.
Há pouquíssima vontade de disfarçar que o
personagem vivido por Dean Martin, o beberrão e mulherengo cantor Dino Latino,
é ele próprio –na verdade, uma versão carregada nas peculiaridades caricatas do
próprio Martin; até mesmo o Rat Pack, a turma formada por ele, Frank Sinatra,
Bing Crosby e outros é mencionada.
Assim, com essa sacada quase metalinguística, o
filme se inicia com a agenda tumultuada de Dino precisando pular de um palco (e
de um quarto de rabo de saia) para o outro.
Numa viagem interestadual de carro, o famoso
cantor é obrigado a fazer um desvio passando pela pequenina cidade de Clímax,
onde tem seu caminho cruzado com o professor de música Orville Spooner (Ray Walston,
substituindo Peter Sellers, a escolha inicial para o papel) e o frentista
Barney Millsap (Cliff Osmond).
Orville, tão desengonçado e ordinário quanto
Tom Ewell em “O Pecado Mora Ao Lado”, é casado com a meiga Zelda (a bela Felicia
Farr), e tão consciente ele é da improbabilidade de seu matrimônio que seu
ciúme o leva a procurar indícios de adultério em cada gesto da esposa –ainda
que Zelda, um anjo em pessoa, seja sempre leal e sincera.
Ao lado de Barney, Orville compõe várias
músicas, por meio das quais sonham em ganhar fama e fortuna, desvencilhando-se
assim da mediocridade local –e amargam, portanto, a frustração da realidade não
mostrar-se animadora.
Isso muda quando Dino aparece no posto de
gasolina de Barney: Uma celebridade que, se demonstrar interesse o bastante em
suas composições, pode gravá-las e cantá-las mundo afora, tornando-os enfim
famosos.
Mas, para isso, Dino tem de ficar um tempo em
Clímax; e, para tanto, Barney dá aquele jeito no cabo do combustível (!).
E além do mais, é necessário jogar-lhe uma isca
adequadamente atrativa; e sabendo de seu histórico mulherengo os dois não
tardam a elaborar um plano tumultuado –levar o cantor para a casa de Orville
onde, em meio aos inevitáveis flertes com a esposa dele, eles terão tempo de
sobra para apresentar-lhe suas músicas.
É claro, porém, que Orville não admitiria tal
situação acontecer-lhe com a esposa –pelo menos, não com a esposa de verdade!
Entre aí, então, o plano de Barney: Mandar Zelda para passar uma noite na casa
da mãe e, em lugar dela, colocar uma das moçoilas (devidamente remunerada) da
boate local, o ‘Belly Button’, para oferecer à Dino a chance de uma irrecusável
aventura extraconjugal.
A escolhida vem a ser a apetitosa e insinuante
Polly (e aí que finalmente Kim Novak, deliciosa como sempre, entra na trama)
que, sem muito entusiasmo em ter de agradar ao famoso, começa a incorporar de
tal forma o papel de esposa de Orville que a ele se apega (!).
Assim, tal e qual ocorre em “O Pecado Mora Ao
Lado”, a condução de “Beije-Me, Idiota” se dá ao longo de uma noite de farsa,
onde aparências são divertidamente mantidas para que um plano (que se complica
cada vez mais) tenha progresso. Por seu número um pouco maior de interessantes
personagens, contudo, “Beije-Me, Idiota” vai um pouco mais além em sua audácia:
Aos poucos, o roteiro inteligentíssimo orquestra uma troca espantosa e não
destituída de certo cinismo entre as identidades de Zelda e Polly –a garota de
programa que vira esposa e a esposa que vira garota de programa (!).
No início divertidamente farsesco (e na decisão
admirável de construir um filme que não se acomodasse apenas nisso) conduzido a
um quiproquó bastante inesperado –e revelador das capacidades maiúsculas de
Wilder como diretor e roteirista –o filme é um exemplar e tanto da compreensão
espetacular que ele tinha da fluidez existencial das relações, e da capacidade
inata em trabalha-las numa narrativa ágil e cinematográfica.
Suas ousadias, é presumível, não escaparam das
inevitáveis retaliações morais da época: Especialmente seu arremate, perto do
desfecho, é de uma precisão narrativa que só se iguala à indignação que
suscitou na Legião Católica da Decência, responsável por muito da obscuridade
que tornou este trabalho maravilhoso pouco lembrado nos dias hoje.
Um inconformismo disfarçado
de gracejo que fazia um bem danado ao cinema hollywoodiano dos anos 1960.
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