segunda-feira, 15 de abril de 2019

O Gato Preto

Há um senso incomum de denúncia nas obras de Kaneto Shindo. Se na grande maioria dos trabalhos oriundos do cinema japonês, os samurais exercem papéis heroicos e plenos de nobreza, em diversos trabalhos de Shindo, eles ganham um retrato bem mais ambíguo.
A cena que abre “O Gato Preto” já é poderosamente indicativa disso: Um grupo de samurais sujos, brutalizados e mal-encarados chega interferindo na harmonia de uma cabana à beira de um bambuzal.
Devoram a comida que lá encontram, e não têm escrúpulos em violentar e matar as duas mulheres que lá estão, para depois atear fogo no lugar, reduzindo-o a cinzas.
É o gatilho para a circunstância sobrenatural que definirá o filme: Retornando como poderosos espíritos vingativos graças à providência de um gato preto, as duas mulheres, a jovem (a linda Kiwako Taichi) e a idosa (Nobuko Otowa), passarão a capturar incautos samurais transeuntes todas as noites.
A jovem usa de sua beleza para fazer-se isca, atraindo-os para uma cabana em meio à floresta, onde eles têm suas gargantas brutalmente ceifadas –ao que parece, eles se converteram em uma espécie de besta, misto de humano e felino.
O mestre Raiko (Kei Satô), o arrogante e displicente líder samurai da região (além de tremendamente covarde) começa a se alarmar com a quantia cada vez maior de guerreiros vitimados pelo que já é chamado, pelo clamor popular de “Monstro do Portal Rajomon”.
Um a um, os homens que envia para resolver essa questão são encontrados dilacerados.
A princípio, o dedicado soldado Gintoki do Bosque (Kichiemon Nakamura) que surge com a cabeça de um inimigo de batalha lhe parece ser só mais um dos tantos samurais que ele envia para tentar inutilmente sanar o problema, mas Gintoki é, na realidade, o marido e o filho das duas mulheres.
Em regresso da guerra na qual se ocupou por três anos, ele encontra sua casa reduzida à cinzas, e nenhuma pista sequer do paradeiro da esposa e da mãe. Ao partir para confrontar os tais fantasmas, ele inicialmente não as reconhece, mas aos poucos percebe quem elas são –entretanto, pela natureza de sua maldição, elas não podem revelar os motivos pelos quais estão fazendo o que fazem, e isso não impede de representar, para Gintoki, um dilema.
Mais do que opor seu protagonista entre o dever (dar cabo dos fantasmas) e o bem querer (estar junto de sua família), o diretor Shindo dedica mais tempo e atenção ao tímido, porém, eficaz erotismo que pulsa da situação de Gintoki e sua bela esposa, cuja reunião carnal tão almejada por ambos é um empecilho para a natureza sobrenatural dela.
As escolhas dolorosas que seus protagonistas têm de fazer a partir daí representam os grandes impulsos dramáticos que percebemos na narrativa.
Uma obra poderosa que vislumbra o detalhe de que o mal, e todas as ramificações tóxicas decorrentes dele, podem brotar em qualquer instância.

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