A escolha de filmar em preto & branco
aproxima este filme de obras como “Drácula”, de Todd Browning, e “Nosferatu”,
de Murnau, ainda que ele se faça curioso pelo simples fato de tratar-se de um
filme de vampiros dirigido por Abel Ferrara; apesar dessa natureza improvável,
“O Vício”, não obstante seu tema incomum, consegue abraçar as inquietações
características de ordem existencial do seu diretor. Em meio à tantos títulos
pertinentes que ele lançou, aqui é onde ele mais verbaliza seu discurso
sociológico, filosófico e teológico, fazendo-o soar paradoxalmente inacessível
graças aos diálogos (e monólogos) profundamente eruditos.
Isso é inerente ao fato da protagonista ser uma
universitária que estuda Filosofia. Quando começa o filme, Kathleen Conklyn
(Lili Taylor) está assim imersa na atribulada vida acadêmica, às voltas com
teses elaboradas sobre a condição humana do Século XX.
Numa distraída caminhada à noite nas ruas de
Nova York, ela cruza com uma criatura inesperada: Uma vampira personificada por
Annabella Sciorra (atriz de produções populares nos anos 1990, como “Aprendiz
de Feiticeiro” e “A Mão Que Balança O Berço”).
Ela ataca Kathleen que, nos dias que se seguem torna-se,
também ela uma vampira.
Segue-se assim o expediente que parece
realmente interessar à Ferrara num filme desse gênero: A adaptação física,
circunstancial e existencial do indivíduo à essa condição –no princípio
perplexo, Kathleen abraça uma mudança de comportamento motivada pelas doutrinas
dos pensadores que estuda, e converte-se numa predadora convicta que enumera
vítimas noite após noite.
Nesse registro, Ferrara quer aproximar a
percepção do vampirismo de mazelas sociais do mundo moderno com uma
similaridade ainda mais intensamente estabelecida do que quaisquer outras obras
antes dele –logo em sua primeira parada num posto hospitalar, Kathleen ouve de
um médico as possibilidades remotas de seus males proverem do vírus da AIDS
(doença que serviu da metáfora em muitas obras do gênero depois dos anos 1980);
entretanto, a relação que Ferrara mais quer fazer (e que se percebe desde o
título) é entre a sede de sangue e a dependência química. Na primeira vez em
que Kathleen experimenta sangue, ela o faz extraindo do braço de um mendigo com
uma seringa, para então injetar em êxtase em seu próprio braço. Na esteira desse
raciocínio, vem também a cena inusitada em que ela encontra-se com o que parece
ser outro vampiro, vivido com perspicácia sinistra por Christopher Walken;
veterano, ele afirma não mais depender de sangue, tendo encontrado uma forma de
preservar uma espécie de abstinência através dos séculos –todavia, ele parece
contradizer a própria afirmação (e contradição é um aspecto que pontua muitos
destes personagens) atacando a própria Kathleen para dela tirar seus sangue
(!).
Até mesmo a sequência final, de volta a um
hospital, sugere outra situação até então imprevista num filme de vampiros: A
protagonista acometida de uma overdose (!) de sangue das vítimas.
Outro acréscimo
desconcertante surge certamente no desfecho, quando a protagonista abraça todas
as implicações de ordem católica tão poderosamente essenciais nos filmes de
Ferrara –ele confronta sua vampira com os conceitos inevitáveis de culpa,
pecado e redenção que norteiam sua crença, levando a um final enigmático e
cheio de ambiguidade.
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