segunda-feira, 22 de abril de 2019

O Vício

A escolha de filmar em preto & branco aproxima este filme de obras como “Drácula”, de Todd Browning, e “Nosferatu”, de Murnau, ainda que ele se faça curioso pelo simples fato de tratar-se de um filme de vampiros dirigido por Abel Ferrara; apesar dessa natureza improvável, “O Vício”, não obstante seu tema incomum, consegue abraçar as inquietações características de ordem existencial do seu diretor. Em meio à tantos títulos pertinentes que ele lançou, aqui é onde ele mais verbaliza seu discurso sociológico, filosófico e teológico, fazendo-o soar paradoxalmente inacessível graças aos diálogos (e monólogos) profundamente eruditos.
Isso é inerente ao fato da protagonista ser uma universitária que estuda Filosofia. Quando começa o filme, Kathleen Conklyn (Lili Taylor) está assim imersa na atribulada vida acadêmica, às voltas com teses elaboradas sobre a condição humana do Século XX.
Numa distraída caminhada à noite nas ruas de Nova York, ela cruza com uma criatura inesperada: Uma vampira personificada por Annabella Sciorra (atriz de produções populares nos anos 1990, como “Aprendiz de Feiticeiro” e “A Mão Que Balança O Berço”).
Ela ataca Kathleen que, nos dias que se seguem torna-se, também ela uma vampira.
Segue-se assim o expediente que parece realmente interessar à Ferrara num filme desse gênero: A adaptação física, circunstancial e existencial do indivíduo à essa condição –no princípio perplexo, Kathleen abraça uma mudança de comportamento motivada pelas doutrinas dos pensadores que estuda, e converte-se numa predadora convicta que enumera vítimas noite após noite.
Nesse registro, Ferrara quer aproximar a percepção do vampirismo de mazelas sociais do mundo moderno com uma similaridade ainda mais intensamente estabelecida do que quaisquer outras obras antes dele –logo em sua primeira parada num posto hospitalar, Kathleen ouve de um médico as possibilidades remotas de seus males proverem do vírus da AIDS (doença que serviu da metáfora em muitas obras do gênero depois dos anos 1980); entretanto, a relação que Ferrara mais quer fazer (e que se percebe desde o título) é entre a sede de sangue e a dependência química. Na primeira vez em que Kathleen experimenta sangue, ela o faz extraindo do braço de um mendigo com uma seringa, para então injetar em êxtase em seu próprio braço. Na esteira desse raciocínio, vem também a cena inusitada em que ela encontra-se com o que parece ser outro vampiro, vivido com perspicácia sinistra por Christopher Walken; veterano, ele afirma não mais depender de sangue, tendo encontrado uma forma de preservar uma espécie de abstinência através dos séculos –todavia, ele parece contradizer a própria afirmação (e contradição é um aspecto que pontua muitos destes personagens) atacando a própria Kathleen para dela tirar seus sangue (!).
Até mesmo a sequência final, de volta a um hospital, sugere outra situação até então imprevista num filme de vampiros: A protagonista acometida de uma overdose (!) de sangue das vítimas.
Outro acréscimo desconcertante surge certamente no desfecho, quando a protagonista abraça todas as implicações de ordem católica tão poderosamente essenciais nos filmes de Ferrara –ele confronta sua vampira com os conceitos inevitáveis de culpa, pecado e redenção que norteiam sua crença, levando a um final enigmático e cheio de ambiguidade.

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