terça-feira, 23 de julho de 2019

eXistenZ

No fim da década de 1990, David Cronenberg reunia todas as características de um autor absoluto. Seu trabalho anterior, “Crash-Estranhos Prazeres”, mostrava uma clara ruptura com quaisquer pressões comerciais ou mercadológicas que poderiam interferir na originalidade de seus projetos (curiosamente, a década seguinte testemunharia uma incorporação espontânea de Cronenberg às práticas mais comerciais).
Se “Crash” era então uma ruptura, a ficção “eXistenZ” tratava-se de uma ratificação de tal decisão. Todas as intransigências e obsessões de Cronenberg estão ali.
Pode ser um futuro próximo em que testemunhamos o entusiasmado teste de um novo jogo que promete alienar ainda mais seus ávidos jogadores: O eXistenZ.
Sua criadora, Allegra Geller (a sempre ótima Jennifer Jason Leight), goza de um status de superestrela, e os participantes disputam a chance de serem os primeiros a imergir em sua criação.
E, como toda obra de Cronenberg, as coisas não tardam a ficar bem mais estranhas do que parecem: O console do tal jogo é uma parafernália orgânica a lembrar muito um órgão animal (e a lembrar também as criações bizarras e grotescas vistas em “Mistérios e Paixões”) e seu plug (quase um cordão umbilical!) se conecta à um orifício feito artificialmente pelos usuários na coluna espinhal. O eXistenZ é, portanto, um jogo que se conecta ao próprio sistema nervoso deles levando-os a experimentar novos níveis de realidade.
Durante esse primeiro teste, um jovem terrorista, membro de um grupo rebelado contra a alienação do jogo, tenta matar Allegra (usando de uma desconcertante pistola composta por ossos de animais) que acaba fugindo na companhia do segurança Ted Pikul (Jude Law).
Ela precisa do auxílio dele para retornar à realidade do eXistenZ e salvaguardar o bem-estar do jogo, um investimento de milhões. A partir daí (ou talvez até mesmo antes disso), a narrativa de Cronenberg começa a confundir tanto protagonistas quanto expectador, deixando nebulosa a percepção do que é real; os jogadores, afinal, perdem gradualmente a capacidade de distinção a medida que imergem nessa outra realidade.
Sem desviar-se de suas fixações com mutação e simbioses de nível minuciosamente fisiológico, Cronenberg fala aqui sobre as consequências nefastas e imprevisíveis que o artista pode arcar com a repercussão de sua obra (inspirado, segundo ele, numa conversa com o escritor Salman Rudshie), sobre o mérito inerente aos jogos de imersão como fugas da vida real e sobre o perigo da alienação insidiosa que pode nos desvincular da realidade.
Como o inesperado desfecho nos mostra, o maior perigo é não sabermos se estamos jogando ou não.

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