terça-feira, 31 de dezembro de 2019

A Rena Branca

É natural que uma obra de gênero oriunda de uma cultura tão pouco conhecida traga uma distinção inerente ao que temos por convencional. Realizado na Finlândia, em 1952, este “A Rena Branca” é um filme de terror onde os códigos habituais do gênero por vezes desconcertam o expectador por seu emprego incomum e em alguns momentos, até por sua inexistência.
Seu prólogo já estabelece esse caráter desigual ao relatar a origem relacionada à bruxaria da personagem principal numa sequência quase musical, no entanto, transbordante de melancolia e certo fatalismo.
Vivida pela bela, porém igualmente amedrontadora Mirjami Kuosmanem (também ela roteirista ao lado do diretor), essa personagem, Pirita, cresce tornando-se uma moça cortejada pelo pastor de renas Aslak (Kalervo Nissila) que logo se torna seu marido.
O casamento é feliz, mas Pirita não tolera as ausências prolongadas que o pastoreio de animais exige do marido –e que o levam a passar semanas em companhia de outros pastores, amizades estas que ela desaprova.
Ela procura por Tsalkku-Nilla (Arvo Lehesmaa), um xamã beberrão que pouco antes de descobrir, estarrecido, que Pirita é uma bruxa, dá-lhe a instrução: “Mate em sacrifício o primeiro animal que encontrar em sua volta para casa, e será mais forte que todos os pastores de renas!”
O animal em questão que Pirita encontra acaba sendo uma pequena rena branca que ela mata à facadas perante o Grande Espírito da Pedra.
A partir daí, um clima macabro e soturno passa a envolver a protagonista que, dotada da capacidade de converter-se no animal, ataca ocasionalmente os amigos que se revelam próximos demais de seu marido, lhe instigando os ciúmes.
É quase uma variação em torno do mito do vampiro a proposta deste filme dirigido por Erik Blomberg: Pirita se transforma numa rena branca, e não em um morcego, mas, durante o momento de transição, caninos pontudos chegam a aparecer em seus dentes.
O diretor vale-se da fotografia em preto & branco para ressaltar a vastidão tomada por neve do cenário onde tudo se desenlaça, num trabalho que, embora não pareça, deve ter sido complicadíssimo: Devem ter havido infindáveis deliberações de Blomberg (que também acumulou aqui a função de diretor de fotografia) para obter takes distintos, fluentes e continuamente envolventes de um ambiente imutável e monocromático.
Ainda assim, Blomberg revela pouca confiança em sua realização: A trilha sonora, numa característica vista até em obras comerciais da Hollywood daquele período, é onipresente e intermitente, comentando e direcionando todas as impressões cena a cena. É um recurso que não abre espaço para interpretações mais diferenciadas e que chega a drenar do filme um pouco do elemento de terror psicológico que um pouco de silêncio poderia ter fornecido.
No modo poético, ainda que sinistro, com o qual consegue se desvencilhar dessa aridez, o diretor Blomberg tece um conto sobre a manifestação do mal por meio de métodos obscuros que visam atender anseios egoístas realizando um formidável trabalho.

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