quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Desejo e Perigo

Um ano de depois da consagração e da repercussão de “O Segredo de Brokeback Mountain”, Ang Lee fez duas escolhas determinantes para seu projeto seguinte: A primeira, regressar à China, e a segunda, realizar, desta vez, um suspense de espionagem pontuado de cenas heterossexuais de sexo –de fato, embora pouco lembradas, as cenas envolvendo o grande ator Tony Leung (de “Amor À Flor da Pele”) e a bela jovem Tang Wei (de “Hacker”) são de uma ousadia, um requinte e uma contundência raros do cinema.
Por isso mesmo hoje, esta obra de Ang Lee pode ser enxergada como um precursor chinês de “Operação Red Sparrow”, com Jennifer Lawrence, ainda que eu admita ser imprudente comparar aquela produção comercial com a profundidade e a densidade que Ang Lee consegue imprimir aqui.
É, pois, a diferença que um grande diretor faz.
A China ocupada dos anos 1940 é vista pelos olhos inicialmente ingênuos da jovem Wang Chia Chi (Tang Wei) cuja formação quase camponesa dá a ela uma aura de inocência inabalável.
Quando muda-se para a cidade de Shangai, já sob atribulados transtornos políticos, essa inocência servirá como trunfo a ela que será escolhida quando seu grupo de amigos, membros de uma companhia teatral, for recrutado para esforços de guerra mais intensos e engajados.
Wang representará a única oportunidade real dos opositores chineses de se aproximar de um diplomata intocável (vivido pelo sempre impecável Tony Leung) –e conseqüentemente arquitetar um atentado contra sua vida.
Ao mesmo tempo que identifica, imersa em aflição, os torpes desvios sexuais do diplomata de quem se torna amante, Wang também reconhece nele um bem-querer genuíno que, em sua inocência, ela pensou que encontraria no rapaz que inicialmente a arrastou para aquele mundo de contra-inteligência e meias-verdades.
Deveras, tudo em “Desejo e Perigo” obedece a uma natureza de contradição: A dualidade do rapaz que a queria, mas a coagiu ao papel de amante de outrem, e a ambiguidade da própria Wang, capaz de vislumbrar em meio à dor e ao abuso um sentimento de amor.
Essa contradição se reflete nas impressões intensificadas na meia hora final, quando o atentado pelo qual Wang reuniu as devidas informações para que acontecesse começa a se aproximar –e a jovem experimenta angústia real pelo fato desse desenlace estabelecer quem ela é (ou quem ela não é) nesse nebuloso panorama.
Pena que, tão ávido foi o esforço de Ang Lee em expressar essas imprecisões, que algo de inconstante contaminou as motivações de seus personagens –mesmo que interpretados, em geral, com o cuidado dedicado de alguém que sabe, os protagonistas vivenciam um romance que não encontra suporte, um suspense que não representa necessariamente uma surpresa, e uma convicção que não se descobre ressoluta.
Embora dirigido com a perfeição de sempre por Lee –e tal empenho lhe rendeu a segunda premiação consecutiva com o Leão de Ouro no Festival de Veneza –há uma indefinição categórica em “Desejo e Perigo” que compromete um pouco de seu envolvimento com o público.

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